Desde outubro, todo sábado de manhã, chova ou faça sol, a cena se repete: à paisagem do bucólico bairro do Cônego se incorporam, bem ali diante da Igreja de Sant’Anna, duas barracas padronizadas, sob uma lona listrada em branco e amarelo. Elas já se tornaram marca registrada da chamada “feirinha do Cônego”, em frente ao Grupo de Promoção Humana (GPH), endereço certo para consumidores de produtos da agricultura orgânica ou biológica.
A feira é uma iniciativa de um grupo de “guerreiros produtores” – define um deles, Ocimar Alves Teixeira, presidente da Associação de Pequenos Produtores de Janela das Andorinhas (região de Riograndina). Ao todo, 13 membros do núcleo regional (Nova Friburgo, Bom Jardim, Sumidouro e Duas Barras) da Associação dos Agricultores Biológicos do Estado do Rio - Abio (leia box), dos quais sete participam da feira semanal.
O próprio Ocimar conta que tudo começou, ano passado, com o trabalho de assistência técnica, então realizado pelo engenheiro agrônomo Bernardo Spinelli. A idéia era entrar numa feira convencional. “Mas diversos entraves frustraram a proposta”, diz, apontando a dificuldade de vagas para uma das feiras livres locais.
A proposta de oferecer produtos com garantia de cultivo sem agrotóxicos foi ganhando forças. “O grande desafio do agricultor orgânico é a comercialização. Queremos vender diretamente ao consumidor, mas por um preço justo, que nos remunere”, acrescenta, explicando que a feira procura popularizar o produto orgânico, tirando-lhe a imagem de algo para a elite. “Isso não é verdade. A noção das pessoas, por exemplo, de preço alto, é por causa dos grandes supermercados. As seções específicas chegam a cobrar até quatro vezes mais pelo produto.”
Diversidade
Verduras, legumes, frutas, doces em compotas, pó de café, ovos e uma série de outros gêneros garantem a diversidade de produtos. A feira começa cedo. No sábado desta reportagem, chegamos ao local às 7h, quando as barracas eram instaladas. O funcionamento é até meio-dia, mas a maioria dos produtos acaba rapidamente. Naquela manhã, em meia hora o tomate já havia acabado.
Uma clientela ainda pequena, mas fiel garante a continuação da feira. Apesar de possuir clientes nas redondezas (Cascatinha, Olaria e o próprio Cônego), a cada dia é comum ver novos consumidores do Centro e até de outros bairros. Renato Linhares de Assis, pesquisador do núcleo local da Embrapa, é cliente desde fevereiro, quando foi transferido para a cidade. Ele diz que já conhecia o trabalho da Abio. Adepto da alimentação natural, festeja o fato de poder comprar diretamente dos produtores.
Vizinha da feira e uma de suas clientes desde o início, a estudante de psicologia Michelli Santos chegou e fez suas compras em poucos minutos. “Acho ótima oportunidade ter produtos sem agrotóxicos. Excelente iniciativa. Antes, só tínhamos esses produtos numa mercearia do bairro e agora aqui”, disse, exibindo a bolsa de tecido com o slogan: “Produto Orgânico para uma vida melhor”, distribuída aos fregueses na Semana da Agricultura Orgânica, em novembro. Muitos a utilizam, dispensando sacolas plásticas descartáveis.
Os produtos pré-embalados em pacotes transparentes têm determinadas quantidades. O inhame vem pesado em 1 kg, mas a maioria em porções ou unidades. São os casos da laranja, em sacos com dez unidades, e do milho, vendido por espiga. O aipim é um exemplo do preço: o apanhado com quase dois quilos sai a R$ 2,50, enquanto no mercado convencional, geralmente, custa R$ 1,60.
O técnico agrícola e produtor Ocimar fala em expandir a feira para outros locais. Enquanto isso não acontece, procuram fidelizar os clientes e pensam até na entrega em domicílios próximos, mediante compras de valor mínimo estipulado.
GPH complementa merenda
Dejair Lopes de Almeida, pesquisador da Embrapa aposentado, também é um dos sete produtores que fornecem para a feirinha. Ele mesmo descarregava os produtos de seu utilitário Saveiro em caixas plásticas, colocadas próximas às bancas. Dali mesmo eram escolhidas, sem dar tempo de ir para o tabuleiro.
Dejair é um dos fundadores da associação dos agricultores biológicos, a Abio, e conta que, em meados dos anos 1980, um grupo de seis produtores locais iniciou uma feirinha, funcionando inicialmente na Rua Galeano das Neves (entre a agência do INSS e o atual shopping da praça). Depois, a feirinha passou para a Praça do Suspiro, onde funcionou por um bom tempo, na época do boom da produção orgânica local.
Ocimar Teixeira explica que só foi possível implantar a feirinha com a parceria do GPH/Cônego: “A entidade entendeu que é mais um serviço à comunidade. Usamos suas dependências para guardar material e, em contrapartida, doamos à instituição a produção excedente mais perecível, que é utilizada na merenda de sua creche-escola.”
“Cidade tem potencial para ampliar aos pequenos produtores”
Há dez anos, funcionário do Sítio Cultivar, no circuito turístico Ponte Branca, onde, entre outros produtos, se cultiva a alface hidropônica (plantio na água), Flávio Jandre vem acompanhando e conhece bem a história dos orgânicos na cidade. Ele conta que a criação da feirinha, na década de 80, tinha foco no mercado de Niterói. “Hoje o custo não viabiliza. Para se vender R$ 100 lá, o produtor fica só com uns R$ 40. Os 60 por cento restantes ficam na estrada, em transporte, pedágio, impostos”.
Flavinho, como chamam os companheiros, concorda que a comercialização direta é uma das dificuldades. Mas não a única. “Entre os grandes problemas da agricultura orgânica, faltam fontes de pesquisa”, alerta, explicando: “Estamos nas mãos das grandes empresas; comprar sementes representa um grande gasto, pois da semente de brócolis, por exemplo, na segunda colheita, nunca se consegue colher o mesmo produto. Sai uma espécie diferente, e não conseguimos semente própria, implicando em custos fixos”.
A produção orgânica também é cara, segundo Flávio, que cita a mão-de-obra como exemplo. “Enquanto uma pessoa cuida de 1 kg de cenoura no orgânico, no convencional o manejo requer uma pessoa para 30 metros de lavoura. Para se ter uma idéia, em 150 metros de canteiro, correspondendo a três canteiros de 50 metros, conseguimos apurar 25 reais, mas o gasto pode chegar a 150 reais. Somos realmente guerreiros”, ressalta.
Para Flávio, “o município tem potencial”. Defende que “para aproveitá-lo, se deve ampliar o número de consumidores, criando um grande centro de comercialização”. Por outro lado, diz ser preciso dar oportunidade para muitos outros pequenos produtores da região também terem acesso ao mercado, que acha ainda muito fechado e limitado.
Um pouco da história
Quatro anos antes de entidade similar paulista
A Associação dos Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro (Abio) funciona junto ao Jardim Botânico de Niterói (Alameda São Boaventura). Mas a entidade foi fundada em Nova Friburgo há mais de duas décadas: no ano de 1984, um pequeno grupo de agricultores reuniu-se para implantar a primeira feira de orgânicos do Brasil.
No ano seguinte, o mesmo grupo fundou a Abio para contribuir com a expansão do movimento, então incipiente no país. Além de aprender a produzir organicamente, os agricultores precisaram criar canais de comercialização direta e estabelecer um conceito (normas técnicas de certificação), à época, baseado na International Federation for Organic Agriculture Movements (Ifoam).
Atualmente reunindo mais de 180 sócios agricultores, organizados em vários núcleos (Brejal, Cachoeiras de Macacu, Itaboraí, Miracema, Nova Friburgo, Paty do Alferes, Petrópolis, Porciúncula, São José do Vale do Rio Preto, Seropédica-Rio da Prata, Teresópolis, Vassouras, entre outros), além de produtores, a Abio certifica comerciantes e processadores de produtos que usam o seu Selo de Qualidade nas embalagens.
Em seu site (www.abio.org.br / e-mail: abio@ abio.org.br), a entidade apregoa que “Alimento de qualidade é direito de todos”, sustentando que “o consumidor deve levar em conta, ainda, que pagar um pouco mais caro pelo alimento orgânico resulta em economia de gastos com a saúde”. E que “adquirir alimentos orgânicos é a contribuição à preservação do meio ambiente e ao fortalecimento da agricultura familiar”.
A Abio antecede ainda a Associação de Agricultura Orgânica (AAO), fundada em maio de 1989 por um grupo de engenheiros agrônomos, produtores, jornalistas e pesquisadores que praticavam a agricultura orgânica, acreditando na viabilidade socioeconômica e ambiental. Estabelecida na zona oeste de São Paulo, só em 1991 implantava sua feira do produtor orgânico, sete anos após o pioneirismo friburguense.
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