Canudos e a favela

segunda-feira, 07 de dezembro de 2009
por Jornal A Voz da Serra

Maurício Siaines (*)

A última expedição contra o Arraial do Belo Monte, em Canudos, no sertão da Bahia chegava ao Morro da Favela, no dia 28 de junho de 1897. Ali se posicionaram as tropas do Exército para o bombardeio e assédio ao povo que se instalara no vale, à margem do rio Vaza-Barris, em operação que durou até 5 de outubro de 1897. O tenente Henrique Duque Estrada de Macedo Soares fazia parte da força militar e descreveu o que via da seguinte maneira:

“Lá estava ela, colocada em plano inferior às forças a cavaleiro, a temível Cidadela, a lendária capital dos jagunços! À nossa vista deslumbrada, surgia aquele extraordinário amontoado de casas de vários feitios, de cor barrenta e avermelhada, numa caprichosa desordem; dominando aquelas 6.000 habitações de formas bizarras, erguiam-se altaneiras e ameaçadoras, as duas igrejas vis à vis, a do Bom Jesus, ou nova, mostrando o flanco direito à 1ª coluna”. (Henrique D. E. Macedo Soares, 1985. A guerra de Canudos. Philobiblion / Pró-memória, Rio de Janeiro, 1985, p. 90)

O Exército realizava naquele momento o que se acreditava ser uma reconquista territorial por parte do Estado e da sociedade brasileira. Canudos era o inimigo. “Incompreensível e bárbaro inimigo”, como qualificou Euclides da Cunha, inimigo esse que também espantou o tenente Macedo Soares ao vê-lo pela primeira vez. E esse espanto acontecia porque ali não estava apenas um problema de estratégia militar, outra realidade social, difícil de compreender, se revelava.

O governo Prudente de Moraes (1894-1898) tinha urgência de anunciar o fim da Guerra de Canudos ao mundo, em 1897. O tradutor alemão de Os sertões Berthold Zilly, em posfácio à edição alemã, diz que, acabada a guerra, um cavaleiro do Exército se deslocou até Monte Santo, cidade mais próxima onde havia telégrafo, para comunicar o fato ao Rio de Janeiro. A informação foi transmitida ao mundo e, no dia 8 de outubro, isto é, três dias depois do último combate, já era notícia de primeira página no jornal liberal berlinense Vossiche Zeitung. O governo precisava mostrar ao mundo a vitória da civilização sobre a barbárie, que supunha ter conseguido.

A ideia de reconquista territorial e de apresentação ao exterior de um caráter civilizado da vida social local também está presente nas intervenções do Estado, no Rio de Janeiro, através das Unidades de Polícia Pacificadoras, UPPs. Na última segunda-feira, 1º de dezembro, foram ocupadas favelas da Zona Sul do Rio, entre os bairros de Copacabana e Ipanema. Da mesma maneira, procura-se mostrar ao estrangeiro – parece que em função dos negócios de turismo, da atração de capitais de um modo geral, da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 – que aqui existe uma civilização digna dele. Na terça-feira, os traficantes, acuados e desafiando o poder do Estado, reagiram e provocaram pânico no bairro de Copacabana, com incêndio de ônibus e intimidação de comerciantes. Na quarta-feira, repetiram-se ações desse tipo.

O tráfico de drogas, com a liquidez financeira que conseguiu, deu poder a grupos marginalizados, que até então eram insignificantes porque não representavam ameaça. O dinheiro da droga entrou na favela permitindo o consumo de alguns bens até então reservados às elites, alterando relações sociais existentes. Mas os traficantes não são um poder paralelo que possa competir com o Estado, embora imponham algumas normas de conduta nos locais que dominam. Mais do que uma reconquista territorial, o que está em questão é o resgate de uma população de mais de um milhão de pessoas, o que requer grandes investimentos em educação, saúde e infraestrutura de um modo geral.

Sem dúvida, todos somos historicamente responsáveis pelo que se tornaram as grandes cidades brasileiras, especialmente o Rio de Janeiro. Mas é inútil apenas afirmar essa responsabilidade. Hoje, vivenciamos ações mais audaciosas de traficantes dos morros, como derrubar um helicóptero da PM em Vila Isabel, ou aterrorizar o bairro de Copacabana. É preciso que tenhamos cuidado para não repetir na cidade o que foi feito no sertão, ao final do século 19. Naquela época, acreditava-se ser necessário mostrar ao mundo que o Brasil era um país civilizado e não sujeito a fanáticos que desejavam restaurar a monarquia. O fim foi um morticínio. No caso do atual enfrentamento, é fundamental encontrar um caminho que permita ao Estado cumprir o seu papel de guardião da lei e de proteção do cidadão, sem provocar um trágico desfecho semelhante ao que aconteceu em Canudos, em 1897.

(*) Jornalista, mestre em sociologia

mauriciosiaines@gmail.com

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