Câmara debate preconceitos contra negros

quinta-feira, 16 de abril de 2009
por Jornal A Voz da Serra

Ao contrário do que se podia imaginar, a sessão específica da Câmara solicitada pelo vereador Cláudio Damião não teve por objetivo fazer críticas ou trazer de novo à tona as infelizes declarações feitas em fevereiro pelo ex-secretário de Serviços Públicos, Marcelo Jaccoud, comparando cães de rua a crianças negras. As palavras do ex-secretário provocaram uma grande comoção no município e acabaram motivando sua exoneração.

Cláudio Damião fez questão de explicar que a finalidade da reunião foi levantar a questão do preconceito e o quanto ele influencia a vida das pessoas. Em outras palavras, estimular a reflexão sobre o racismo, elevando o tom dos debates a respeito deste tema. “Não queremos julgar o secretário nem promover qualquer linchamento, pois achamos que esta é uma questão do passado, mas este debate é importante para o momento presente e futuro do município”, afirmou.

Deixou claro, porém, que o fato ocorrido não se encerrou aí. “A declaração foi feita e até o momento não houve uma retratação pública”, continuou. “Muito mais que as palavras proferidas, temos de nos indignar com aquelas que estão ocultas e os gestos que muitas vezes não chegam sequer a ser percebidos, mas marcam, magoam e machucam”, reafirmou o vereador.

Segundo Cláudio Damião, o fato ocorrido mostra, de forma inequívoca, que “carregamos um preconceito e este estaria impregnado na sociedade. Ele pode não aparecer, ser uma marca constante, mas fica oculto e a gente reproduz quando menos se espera”, disse.

Durante a reunião foi lido um ofício enviado pelo ministro da Igualdade Racial, Edson Santos, lamentando o episódio racista ocorrido em Nova Friburgo e o fato dele ter sido protagonizado por um agente da administração pública municipal. “Que este infeliz acontecimento tenha trazido algum aprendizado ao ex-secretário e sirva para oxigenar a discussão sobre o racismo e a discriminação”, afirmou o documento.

“O preconceito aqui em Friburgo é muito forte”

A reunião contou com a presença de duas lideranças importantes do movimento negro nacional: Antônio Ferreira, militante do Movimento Negro Unificado do Rio de Janeiro, e Edialeda Nascimento, presidente da Secretaria do Movimento Negro do PDT e conselheira do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Rio de Janeiro.

O debate também contou com a participação de representantes de associações de moradores, da presidente da colônia africana e do Centro Cultural Afro-Brasileiro Ysun-Okê, Ilma Santos, que leu um documento oficial do grupo que representa, o Ysun-Okê, considerando a declaração do ex-secretário “injuriosa e carregada de preconceito”, mas não racista, crime inafiançável e imprescritível.

Já Antônio Mário Ferreira, do Movimento Negro Unificado, foi um pouco além em suas colocações. “Quando a gente ouve um representante público, mesmo sem intenção, usar uma comparação dessas, é porque pensa daquela maneira”, afirmou. “Não vamos condenar quem se retrata mas também não se perdoa de uma forma tão normal. É importante fazer uma reflexão sobre o que aconteceu”, ressaltou.

Edialeda Nascimento, do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial, disse conhecer bem Friburgo, até por ter parentes na cidade e sabe que ainda hoje os negros não são bem vistos aqui. “Por isso mesmo, não chego a estranhar a declaração infeliz do secretário, apesar de repudiá-la profundamente”, afirmou. Para fazer frente ao preconceito, defendeu a política de cotas para negros nas escolas e a necessidade dos colégios ensinarem a história dos negros e não apenas dos portugueses, dos brancos e, no caso de Nova Friburgo, dos suíços.

Quem também levantou este tema foi André Abicalil, da Comissão de Direitos Humanos da OAB. “Analisando juridicamente o ocorrido observamos que ele não se caracteriza como crime de racismo. Foi uma declaração infeliz, como ele próprio diz, deslocada do contexto. De qualquer forma, reflete o pensamento de muitos friburguenses. Aqui sempre se vendeu a ideia de que Friburgo é a Suíça Brasileira, onde as pessoas são louras de olhos azuis, o que não é verdade. O preconceito em Nova Friburgo é muito forte, os negros aqui nunca tiveram vez, sempre foram encarados de uma forma serviçal”, disse.

Ex-secretário se desculpa em público por declarações racistas

Durante a sessão, o vereador Edson Flávio leu uma carta aberta enviada por Marcelo Jaccoud, que ele pediu para ser lida na reunião onde se discutiria o lamentável episódio em que acabou envolvido por acusações de racismo. O ex-secretário disse que não assistiu a matéria veiculada pela TVC e não foi procurado em momento algum por aquela emissora para dar a sua versão dos fatos.

“A ênfase dada a uma fala minha durante uma das ligações feitas por uma interlocutora - e que teria um viés racista ao ser retirada de seu contexto original - acabou por gerar uma enorme repercussão e uma grande comoção”, afirmou. No documento, Jaccoud garantiu que se a gravação original vier a aparecer ficará claro que não teve a intenção de ofender a quem quer que seja. “Nem poderia, pois aqueles que me conhecem sabem que de mim não partiria tamanha agressão e ofensa”, declarou.

“De qualquer forma, enquanto esta gravação não aparecer, peço desculpas públicas a todos aqueles que se sentiram ofendidos”, ressaltou, reiterando sua posição de homem cristão, “não admitindo quaisquer sentimentos que não os da fraternidade, respeito e tolerância a todas as pessoas, negras ou não”.

Vereador quer que 20% das vagas em cargos comissionados sejam ocupadas por negros

Durante a reunião, o vereador Isaque Demani anunciou ter proposto um projeto de lei obrigando todos os órgãos da administração pública direta e indireta a disponibilizarem em seus quadros de cargos em comissão o limite mínimo de 20% de vagas para afrodescendentes, sendo 10% das mesmas reservadas para homens e 20% para mulheres.

“Existe um componente grave dessa desigualdade que é o racismo cordial existente em nossa cultura. Digo cordial, pois essa cordialidade é um bom disfarce para ocultar a realidade cruel que fez com que o Brasil fosse o último país do mundo a abolir formalmente a escravidão”, continuou. “E ele, o racismo, está presente até hoje em nossa sociedade, às vezes através de brincadeiras, às vezes nos xingamentos, às vezes nas entrelinhas”, afirmou, destacando que enquanto existir no Brasil este racismo cordial será preciso que o Estado crie instrumentos que promovam a inclusão dos negros nos diversos segmentos sociais onde sua presença é exceção”.

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