Boulos: “O desafio da esquerda é voltar a falar para quem pensa diferente”

"Eu pretendo ser um presidente que vai fazer alterações institucionais no Brasil", diz o pré-candidato pelo PSOL e pelo PCB
terça-feira, 17 de julho de 2018
por Márcio Madeira (marcio@avozdaserra.com.br)
Boulos:
Boulos: "Eu respeito as instituições, mas não acho que nenhuma delas é infalível e está acima do bem e do mal" (Foto: Henrique Pinheiro)

Às vésperas do início da campanha eleitoral, A VOZ DA SERRA publica sua segunda entrevista exclusiva com um pré-candidato à presidência da República, no atual ciclo eleitoral. Após conversar com Ciro Gomes, em dezembro do ano passado, neste mês de julho foi a vez de ouvir a principais propostas de Guilherme Boulos, pré-candidato pelo Psol e pelo PCB.

A VOZ DA SERRA: O Brasil viu o senhor ao lado do ex-presidente Lula, e os elogios que ele lhe fez em São Bernardo do Campo, pouco antes de seguir para a prisão, em Curitiba. Considerando que evidentemente existe uma aproximação ideológica entre o senhor e uma experiência recente de governo, parece oportuno questionar quais as principais diferenças entre as suas propostas e o que foi feito e vivido durante os governos do PT.

Guilherme Boulos: Eu acredito que houve erros e acertos ao longo dos governos do Lula e da Dilma. Entre os acertos podemos citar as políticas sociais, programas sociais, investimento público, aumento do salário mínimo... Isso foi importante para o Brasil, e o povo reconhece. Mas, ao mesmo tempo, faltou fazer enfrentamentos a privilégios, a estruturas velhas e arcaicas da política brasileira. A reforma política, por exemplo, não se fez. A opção dos governos do Lula e da Dilma foi governar com quem sempre mandou no estado brasileiro, com as velhas raposas. O tema da reforma tributária é outro exemplo, os privilégios econômicos. Não se enfrentou Banco no Brasil. Ao contrário, essa turma continuou ganhando. Os super-ricos continuaram sem pagar impostos: taxação de grandes fortunas, tributar lucros e dividendos... Um exemplo emblemático é o do IPVA. Quem tem um carro paga IPVA, mas quem tem um jatinho, um iate ou um helicóptero não para um centavo de imposto. O sistema tributário brasileiro é uma esculhambação, é profundamente injusto. Reforma Agrária... Vários temas que historicamente são muito importantes para um projeto de transformação, para enfrentar a desigualdade para valer, não foram tocados durante os governos do PT. Essas são diferenças que nós temos. Nosso projeto é botar o dedo na ferida e enfrentar privilégios. Agora, você citou o momento lá de São Bernardo do Campo. O fato de haver diferenças políticas não faz a gente ser conivente com injustiça. O que ocorreu e está ocorrendo em relação ao ex-presidente Lula é uma farsa judicial. É evidente que o processo, a condenação e a prisão dele têm o objetivo de o retirar das eleições. É uma condenação política, uma prisão política, e isso nós não podemos admitir, porque fere a democracia do nosso país.

AVS: O seu discurso é o de um idealista, que se aproxima muito do Lula de 1989, sob vários aspectos. Mas o senhor falou em “opção”, ao se referir ao direcionamento dado pelos governos do PT. Essa parece ser a grande questão a respeito de suas propostas: o senhor acredita mesmo que foi uma opção, ou o PT só conseguiu chegar ao poder e governar a partir do momento em que migrou para o Centro? Porque o senhor já disse em outras oportunidades que pretende enfrentar privilégios de banqueiros, do agronegócio, de pensões relacionadas a militares, e que pretende levar adiante algumas reformas importantes, tudo isso sem governar junto a partidos como o MDB. É preciso questionar, portanto, como será possível levar adiante tais medidas, num contexto em que grande parte do Congresso Nacional está à venda, e é formado por bancadas que defendem os mesmos interesses que o senhor pretende combater. O que faz o senhor acreditar que seja possível concretizar estas propostas?

Boulos: Bom, você falou dos enfrentamentos com as velhas oligarquias políticas, os bancos, os privilégios dos militares - não necessariamente os militares como um todo - como uma lógica de se fazer política no Brasil. Para fazer esse enfrentamento é preciso ter um grande aliado: a maioria da população brasileira. É com isso que eu conto. Note que, historicamente, todas as mudanças se deram assim. Nenhuma mudança se deu de dentro para fora das instituições. Estou falando das grandes mudanças históricas. Como a ditadura militar acabou no Brasil? Não foi um grupo de generais que se reuniu numa sala e falou: ‘gente, já deu o nosso tempo’. Não, foram centenas de milhares de pessoas nas ruas demandando ‘Diretas Já!’. A luta por direitos sociais, o enfrentamento a privilégios, sempre foi com pressão da sociedade. Eu acredito que essas conquistas - mudar o sistema político brasileiro, enfrentar a farra dos bancos, fazer uma reforma tributária profunda, e portanto enfrentar a desigualdade no Brasil – não se fazem dentro desta lógica política. E é por isso que estamos propondo uma nova ordem política no Brasil, uma verdadeira revolução democrática. Um sistema político que está dando errado há tanto tempo, não vai ser com remendos, com pequenos consertos, que vai começar a funcionar. Nós precisamos mudar de cima a baixo, e para isso é preciso haver participação e mobilização por parte da sociedade. Estamos construindo uma campanha que está pisando no barro, olhando no olho, porta a porta, dialogando com as pessoas e fazendo uma construção coletiva, para elevar a consciência política da sociedade e construir um processo que não termina agora em outubro não, independentemente do resultado, ganhando ou perdendo. É um processo de acúmulo de forças de participação da sociedade brasileira para permitir uma mudança profunda, porque não adianta só ganhar a eleição e depois não ter lastro e base na maioria da sociedade para fazer essas mudanças. Para nós, é essencial pensar num novo jeito de fazer política, esse é o ponto de partida. Veja, certo dia me chamaram de ingênuo, por defender essas posições. Ora, eu não conheço nada mais ingênuo do que acreditar que vai se chegar a um lugar diferente seguindo pelo mesmo caminho. A gente vê um discurso pragmático, que soa como realista, dizendo que ‘esse é o único jeito: aliança com os velhos partidos, o toma lá, dá cá do Congresso, sem isso não se governa no Brasil’. Bom, quem faz esse discurso está sendo corresponsável pela desilusão da sociedade com a política. Quem faz esse discurso não pode abrir a boca quando as pessoas dizem que não vão votar em ninguém, que vão votar nulo e não querem mais saber de política porque não presta e é tudo igual. Esse discurso foi responsável por produzir a desesperança e a desilusão da sociedade brasileira. Se nós queremos chegar a outro lugar é preciso recuperar a esperança das pessoas, fazer política de outro jeito. Esse é o sentido da nossa pré-candidatura. A história nos dá vários exemplos de que é possível governar assim, desde que não se entenda governo ou Brasil como algo restrito à Praça dos Três Poderes. Governar não é reunir numa mesma poltrona o presidente da República e o presidente do Congresso para que se decida como as coisas vão ser. Para governar tem que trazer mais gente, tem que trazer a diversidade do povo brasileiro, tem que ouvir as pessoas. Por isso os plebiscitos, por isso os referendos, por isso formas de participação popular. É nisso que eu acredito. Não vejo outra maneira de mudar o Brasil que não seja assim. Essa lógica do ‘não tem outro jeito’ vai levar a mais do mesmo, e ao aprofundamento do abismo que existe hoje entre Brasília e o Brasil.

O senhor falou sobre a importância do respaldo popular, e isso gera perguntas inevitáveis. O senhor não acha que o discurso da esquerda em geral, e do Psol em particular, tem sido muito excludente em relação a pequenas divergências, contribuindo para a formação de uma militância apaixonada e uma rejeição igualmente apaixonada, ampliando a polarização atual da política nacional? Ainda que o fenômeno se observe em todo o espectro político, não existe aí uma certa incoerência entre defender a inclusão, a tolerância, o debate, a necessidade do apoio popular, e reservar esse tipo de tratamento a quem discorda do programa, por exemplo, em relação aos chamados temas polêmicos? O senhor tem defendido a realização de plebiscitos e consultas populares em relação a diversos temas. Não haveria espaço também para a consulta em relação a essas agendas?

Eu compreendo sua pergunta, e acredito que o desafio que está colocado ao conjunto da esquerda brasileira é o de, cada vez mais, voltar a falar para quem está fora, para quem pensa diferente. Nós temos feito esse esforço. Essa minha pré-candidatura é fruto de uma aliança do Psol e do PCB com um conjunto de movimentos sociais: MTST, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Mídia Ninja, movimento feminista, movimento negro, movimento LGBT, movimento da juventude, e que tem buscado dialogar amplamente com muita gente. Você perguntou sobre os plebiscitos, eu acho sim que os grandes temas têm que ser alvo de plebiscitos, inclusive os temas polêmicos. Acho que é possível fazer esse debate com a sociedade brasileira enfrentando preconceitos. Se você me disser: ‘ah, mas a maioria da sociedade brasileira é a favor da redução da maioridade penal’. Sim, as pesquisas mostram isso, mas como tem sido feito esse debate? Não tem um debate acontecendo. Vamos fazer esse debate com o povo, porque eu tenho certeza que se perguntar a uma mãe ou um pai se ele quer que seu filho tenha a primeira sentença ou o primeiro emprego, ele vai saber se posicionar. Se mostrarmos o que é esse sistema carcerário brasileiro, onde querem botar os jovens e até crianças... Um sistema que não tem nenhum papel de reabilitação - ao contrário, muitas vezes acaba sendo uma escola de criminalidade, controlada por facções criminosas, as pessoas colocadas numa situação precária, miserável... Se essa realidade for devidamente conhecida e nós perguntarmos à sociedade se ela acredita que esse ambiente recupera alguém, se é para aí que devem ir os jovens, a população vai saber se posicionar. Eu acredito na democracia, acredito que a gente não deve temer a vontade popular. E sobretudo, acredito que a vontade popular tem que se estabelecer a partir de um debate amplo, sem tabus, e com condições iguais na sociedade. Isso nos permite colocar qualquer tema em plebiscito.

Você tem uma história de militância e de enfrentamentos, inclusive enfrentamento a instituições. Como o eleitor deve interpretar esse aspecto em relação a alguém que é pré-candidato à Presidência da República?

Eu respeito as instituições, mas não acho que nenhuma delas é infalível e está acima do bem e do mal. Eu acho que as instituições têm que ser questionadas pela sociedade, quando não estão funcionando.

Mesmo que o senhor seja o presidente da república?

Mesmo que eu seja o presidente. Eu pretendo ser um presidente que vai fazer alterações institucionais no Brasil. Essa conformação institucional não representa a maioria da sociedade. Nós temos uma institucionalidade falida, nossa república está em pandarecos, está na lona. Precisamos refundar o sistema político brasileiro, democratizar o Judiciário brasileiro. Ninguém se sente representado por essas instituições. Nós precisamos mudá-las. Posso dar um exemplo: por que existem centenas de milhares de pessoas no Brasil que lutam por moradia digna? Porque a lei não se cumpre. O direito a moradia está garantido na Constituição, o Estatuto das Cidades define mecanismos, inclusive para desapropriação de propriedade ociosa para construir moradia popular. Mas isso não é efetivado! Então, quando a instituição não cumpre o seu papel para servir às maiorias, é legítimo que as maiorias questionem as instituições. Uma institucionalidade que está sequestrada e capturada pelo grande poder econômico pode e deve ser questionada pela sociedade.

O Rio de Janeiro vive uma situação bastante particular entre os estados nacionais, e evidentemente necessita de uma atenção especial por parte da União. O que o senhor tem a dizer ao eleitor fluminense a esse respeito?

Quanto ao Rio nós podemos falar sobre duas questões essências: o financiamento do Estado, e a segurança pública, na medida em que há uma intervenção federal neste momento. Em relação ao financiamento, o Rio de Janeiro está asfixiado. Boa parte dos estados e municípios brasileiros estão asfixiados por um endividamento impagável. É preciso renegociar e reestruturar a dívida dos estados com a União, e rever o pacto federativo, porque ele é injusto. A União fica com a maior parte da arrecadação, e frequentemente não está responsável por prover a maior parte dos serviços. O exemplo da Educação é emblemático: 5,5% do PIB vai para a Educação, e apenas um 1% é custeado pela União, os outros 4,5% são de estados e municípios. É preciso direcionar mais investimentos federais para áreas essenciais. O investimento federal no SUS está decrescente nos últimos cinco anos! Precisamos recuperar esses investimentos federais, e ao mesmo tempo dar mais condições para que estados e municípios façam sua política. O segundo ponto é a segurança pública. Nós vamos revogar a intervenção militar – esperamos, aliás, que ela possa ser revogada antes. A intervenção militar é uma aberração, que não resolve o problema da segurança pública. São R$1,2 bilhões investidos para não resolver o problema e manter a política que enxuga gelo, que é a política de militarização, que sabemos que não deu certo. Nenhum dos índices de violência e criminalidade do Rio de Janeiro diminuiu, e muitos deles aumentaram após a intervenção. Essa lógica de que o que resolve é tiro, porrada e bomba, o que resolve é tanque na rua, mais exército e mais fuzil vem sendo aplicada há trinta anos e o problema só se agravou... Nós vamos tratar segurança pública de outro jeito, no Rio e no Brasil inteiro. Nossos investimentos serão em prevenção e inteligência. Vamos fazer com que seja aprovada, dialogando com o Congresso Nacional e a sociedade brasileira, a PEC 51, que prevê a desmilitarização das polícias e o ciclo completo. Como, aliás, acontece na maior parte dos países do mundo. As pessoas falam sobre a desmilitarização como se isso fosse uma aberração, mas a maior parte do mundo tem polícia desmilitarizada com ciclo integral. Ou seja: a mesma polícia que é preventiva e ostensiva é também investigativa e judiciária. Esse é o caminho, foco na prevenção. O Atlas da Violência mostrou que as regiões com maiores índices de criminalidade e violência são aquelas que oferecem menos oportunidades à juventude, com menor oferta de educação, lazer, cultura, menor oferta de emprego. Então, fazer um investimento pesado em oportunidades, no apoio ao primeiro emprego, com a efetivação da Lei do Jovem Aprendiz, retomando o investimento público, esse é um caminho preventivo para a segurança. E também investir em inteligência, para que possamos combater efetivamente o tráfico de armas e munições, que são os grandes vilões dos homicídios no Brasil. Isso tem que ser combatido com uma política de inteligência que não se faz com caveirão, com Bope ou tanque na rua. O orçamento do Estado do Rio em 2016 para Segurança foi de R$ 8 bilhões. Desse total, apenas R$ 26 mil foram destinados a inteligência, isso é escandaloso, é um escárnio, uma política burra.

 

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