Henrique Amorim
“A meta de salvar vidas a qualquer tempo e em qualquer situação não está apenas na nossa farda, mas, principalmente, no nosso sangue”. É com esta afirmação que quatro oficiais do Corpo de Bombeiros de Nova Friburgo que atuaram nos resgates de vítimas de deslizamentos de encostas e soterramentos na fatídica madrugada de 12 de janeiro confidenciaram com exclusividade à reportagem de A VOZ DA SERRA como se sentem três meses após os episódios mais marcantes de suas carreiras, sem dúvida. Ouvimos os sargentos Joaquim Sant’ana Folha, 48 anos, e Rogério Faria Soares, 30 anos, o cabo Ronaldo Lopes de Oliveira, 30, e o tenente Paulo Elias Mafort, 54 anos, todos do 6º Grupamento de Bombeiro Militar (GBM), sob o comando do tenente-coronel Luiz Emanuel Palência Barbosa.
Esses oficiais, que deixaram seus entes queridos e se arriscaram em meio a deslizamentos de terra para salvar vítimas do desastre e resgatar corpos, colocando suas próprias vidas em risco, também se emocionaram, sofreram com perdas nas próprias famílias e tiveram a terrível dor de atuar e acompanhar o resgate dos corpos dos colegas de trabalho soterrados no deslizamento da Rua Cristina Ziede, no Centro: o sargento Marco Antônio Verly e os soldados Flávio Freitas e Vítor Lembo.
Muitos desses verdadeiros heróis da corporação militar merecem o devido reconhecimento tanto do estado, do município, da corporação, como também de toda a sociedade. Alguns deles ainda se submetem a medicamentos de uso controlado, calmantes e se consideram ainda psicologicamente bastante abalados. Afinal de contas, é difícil apagar da mente as imagens chocantes do caos, do pânico dos sobreviventes e da agonia de friburguenses familiares de cada corpo retirado dos escombros e da lama. Sem exagero, cenas de um holocausto.
“Depois de tudo o que aconteceu, concluo que só se sai vivo de um deslizamento dessas proporções se Deus botar a mão. Fui um escolhido por ter atuado e sobrevivido”, disse o sargento Rogério que, mesmo licenciado por motivos de saúde, apresentou-se no quartel para atuar nas frentes de resgate. Antes ele ajudou a salvar vizinhos atingidos por deslizamentos no bairro Jardinlândia, onde mora. “Nas comunidades onde moramos, todos sabem que somos bombeiros e, num momento de aperto, eles nos procuram. Na verdade, fardados ou não, somos bombeiros 24 horas por dia”, complementa o sargento Joaquim Folha.
O cabo Ronaldo também admite que “a ficha ainda não caiu” sobre tudo o que ele vivenciou. O oficial atuou no resgate do gerente de hotel Willian, que se tornou conhecido internacionalmente por ter hidratado o filho bebê com a própria saliva, sob os escombros de casas no centro da cidade. Outra cena que não se apaga de sua mente, e certamente jamais se apagará, é a do momento em que uma nova avalanche desceu sobre o cenário de guerra já instalado com a queda de um prédio na Rua Cristina Ziede e soterrou os três bombeiros. “Foi terrível chamar por eles debaixo de tanta terra e não ouvir resposta”, disse o cabo, que também ficou parcialmente soterrado na ocasião, teve perfuração no tornozelo e fissura nas costelas, e só conseguiu ser resgatado duas horas depois. Ronaldo recebeu os primeiros socorros na maternidade, já que era impossível chegar ao Hospital Raul Sertã. Com hemorragia, ele foi levado para o coreto da Praça Getúlio Vargas e depois, de helicóptero, para um hospital no Rio de Janeiro.
O sargento Folha recorda-se da emoção ao ter resgatado, em meio aos escombros de uma casa atingida e devolvido à família, o enxoval de uma jovem que estava prestes a casar. Ele também encontrou R$ 5 mil num armário destruído pela queda de uma laje e conseguiu devolvê-lo à família que residia na casa. “São agradecimentos que só nos engrandecem”, observou.
Os dramas e as histórias que deixaram marcas em cada bombeiro militar
Sargento Joaquim Folha - No dia 11 de janeiro quando ocorreu a queda de um prédio na Rua São Roque, no bairro Olaria, o sargento estava em Niterói e foi acionado para reforçar a operação de resgate no local. Já de madrugada, sua própria casa foi atingida por uma encosta. Ao escavar a lama junto à varanda, o sargento foi despertado pelos vizinhos que gritavam por socorro à mulher, que ficou imprensada num freezer na casa atingida, onde moravam também quatro crianças.
Outras encostas deslizaram e Folha atuou no resgate de pelo menos nove corpos e conseguiu salvar pelo menos outras 16 pessoas, entre elas, três crianças e demais moradores, com o auxílio dos bombeiros vizinhos, o sargento Roberto Oliveira e o cabo Vilebaldo Galdino. Todas as vítimas com múltiplas fraturas não puderam ser levadas para o hospital, devido ao alagamento de todo o eixo rodoviário, e foram pré-medicadas sobre uma mesa de sinuca improvisada por Folha, que também é enfermeiro, num bar, no próprio local. Tudo isso em meio ao desespero de demais vítimas, familiares e vizinhos.
Aos 21 anos de carreira e traumatizado com o drama enfrentado, Folha se emociona ao lembrar do pranto de agradecimento de uma mulher, que o abraçou e o agradeceu por ele ter conseguido salvar a filha, levando-a para o hospital.
Sargento Rogério Soares - Licenciado desde setembro para tratamento de saúde por ter fraturado dois ossos do antebraço esquerdo e submetido à cirurgia, o sargento Rogério também atuou no resgate de vizinhos vitimados por deslizamentos no bairro Jardinlândia. Antes disso, ao saber pela TV da queda do prédio em Olaria, ele apresentou-se no quartel ajudar no apoio operacional. Porém, na madrugada seguinte, foi acionado a retornar, mas viu-se impossibilitado de deslocar-se devido a queda de encostas e alagamentos. Preocupado, Rogério saiu às ruas junto com dois primos e deparou-se com cenas chocantes: carros amontoados empurrados por enxurradas em meio a total escuridão e forte chuva.
Ao ouvir pedidos de socorro, ele ajudou na escavação de terra e retirada de escombros para tentar salvar vítimas no Jardinlândia, entre elas, um menino. Ao tentar resgatá-lo, Rogério atentou para um novo deslizamento no local. “Cheguei a gelar na hora, ao ver a lama passando ao nosso lado, mas com dificuldade consegui chegar até outra casa, onde uma caixa d’água desabou com a força de uma avalanche e quase afogou uma criança. Salvá-la das águas foi emocionante”, lembra o sargento.
Outro resgate foi o de uma mulher presa aos escombros, cujo filho se recusou a deixar o local até que a mãe, com fraturas, fosse salva. Com a ajuda de uma escada, Rogério improvisou uma travessia para retirar vizinhos de cerca de 20 casas soterradas. Somente no dia 13 outras equipes de socorro conseguiram chegar ao local. Rogério, ao todo, salvou mais de dez vizinhos e participou das operações de resgate de pelo menos outros 38 corpos.
Cabo Ronaldo Lopes Oliveira - No prenúncio da tragédia, o desabamento de Olaria, o cabo Lopes atuou na operação de busca e salvamento ajudando no resgate de quatro vítimas, duas delas mortas. Ao deixar o local, já de madrugada, ele não conseguiu retornar ao quartel devido aos alagamentos. No caminho, salvou outras vítimas do transbordamento do Rio Cônego. Na Avenida Euterpe Friburguense, sua equipe foi acionada para resgatar uma idosa que se afogava dentro de casa. Por volta das 3h da madrugada do dia 12, Lopes partiu para um chamado de desabamento no Parque Santa Eliza, mas, ao tentar atravessar o Centro, já totalmente alagado, em contramão pela Rua Augusto Spinelli, participou com mais sete oficiais do resgate de outras duas senhoras vítimas de um desabamento. Dali, o cabo Lopes não conseguiu mais avançar. Caíram nas imediações outras três barreiras, matando, inclusive, os oficiais bombeiros.
“No primeiro deslizamento morreram duas mulheres. Integrei a primeira equipe de bombeiros que chegou ao local. De repente ouvi um forte barulho. Era uma segunda barreira, que deslizou e soterrou nossos colegas. Foi um golpe muito forte. Comecei a chamar por eles, sem resposta. Depois outra barreira caiu e me atingiu também. Tive hemorragia e sofri bastante. Quando se lida com a perda de vidas, principalmente de amigos, ficamos sem ação, nos sentimos impotentes”, destaca Lopes.
Tenente Paulo Elias Mafort - Embora já na reserva, mas por morar bem próximo ao quartel, sua função de bombeiro não parou. “Com a chuva torrencial fui chamado por moradores à Rua General Osório, para ajudar a socorrer uma menina soterrada com o deslizamento de uma casa. Chegando lá, percebi que uma moradora estava parcialmente enterrada na lama e precisei da ajuda de equipes para salvá-la. Ajudei a escavar a lama com as próprias mãos, e tanto a mulher como a menina foram retiradas da avalanche com vida. Ainda no local soube da morte dos colegas bombeiros. Em 33 anos de corporação, já pude participar de tragédias como a de 1979, mas as proporções desta última foram sem precedentes, incapaz de deixar de marcar a qualquer militar, a qualquer ser humano”, resumiu.
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