“Avenida Brasil” e a filosofia

segunda-feira, 15 de outubro de 2012
por Jornal A Voz da Serra

Rodrigo Pinto de Brito
Na “República”, uma das mais fundamentais obras desse artifício monolítico de convenções chamado “ocidente”, Platão apresenta-nos não só a célebre Alegoria da Caverna—que insistente e equivocadamente afirma-se ter inspirado os irmãos Wachowski em “The Matrix”, quando, na verdade, a “Alegoria” inspirou as “Meditações” de Descartes, esse, sim, a iminência parda por trás do roteiro do filme—mas, principalmente, Platão disserta sobre o Estado perfeito, tendo um único foco em mente: qual seria a melhor forma de organização social capaz de propiciar o engrandecimento dos cidadãos, como cidadãos e como coletivo, pólis, ou cidade. O filósofo ateniense, um aristocrata profundamente ressentido com um dos feitos mais nefastos do regime democrático de sua época (a condenação de Sócrates, seu mestre e amigo, à morte), não hesita em defender um regime totalitário e de castas, com censura forte, contra os desmandos e o erro do que ele considerava ser a turba ignorante. Dessa forma, uma preocupação colateral de Platão na “República” é com a cultura de massa—de fato, talvez ele seja o primeiro a perceber a influência, através do exemplo, que uma obra artística pode causar sobre alguém, fazendo veicular mensagens comprometidas com determinados discursos de poder e dominação, através de aparatos estéticos agradáveis, assim, como que anestesiado, o espectador nem percebe o vírus inoculado em sua mente. 
Por outro lado, o maior discípulo de Platão, Aristóteles, que ousou do mestre discordar em muitos pontos e que era mais confiante no potencial humano, diz-nos na “Poética” que, apesar de a arte realmente possuir um potencial perigoso, conforme detectado por Platão, mesmo assim, ela tem o mérito de fazer com que o espectador se coloque nos lugares de cada um dos personagens, identificando-se com eles, com suas mazelas e virtudes, imitando mentalmente os atos encenados ou descritos e realizando atos que não ousaria cometer “na vida real”, expurgando de si nesse processo mimético-catártico-pedagógico um desejo de agir que poderia causar graves mal-estares sociais.  
Talvez Platão e Aristóteles tivessem em mente as tragédias de Eurípides, cuja Medeia (em uma obra homônima) é capaz de sacrificar até mesmo o que mais ama, os próprios filhos, que eram sua única riqueza e, paradoxalmente, o único elo com aquele em quem ela deposita todo seu ódio, Jasão, de herói argonauta, aventureiro em busca do velocino de ouro, a trapaceiro, traidor e mentiroso. Mas Medeia, apesar do crime deveras hediondo, tinha motivos convincentes para querer ver a ruína do ex-herói, ela nos cativa porque nos identificamos com ela, mas não é fácil admitir isso, que Platão temia—possivelmente porque via no infanticídio em massa as consequências de um “agir conforme Medeia”—e a Aristóteles repugnava, não obstante o desejável e exacerbado potencial catártico-pedagógico da obra. E Eurípides não estava só, com ele vinham ainda, por exemplo, Sófocles e Ésquilo, cujas respectivas “Electra” e “Oresteia” narram-nos, entre outras coisas, as maquinações de Clitemnestra para matar seu próprio marido Agamenon, em seu leito, ao retornar da guerra contra Troia. Sófocles, Ésquilo e Eurípides formavam a tríade que lotou os teatros atenienses com centenas de milhares de espectadores, durante gerações a fio. Como as novelas hoje, as tragédias tinham público cativo.
Finalmente, considerando todo o apelo e beleza das tragédias, é compreensível a tamanha influência que ainda têm na nossa cultura, sorrateiramente influenciando, talvez inconscientemente, mesmo os autores de novelas. Pense na “Avenida Brasil”, de João Emanuel Carneiro, em que a personagem Nina, tal qual Medeia, motivada por uma vingança obsessiva, é capaz de sacrificar aquilo que mais ama, o personagem Jorginho, para ver a ruína daquela que ela odeia, a personagem Carminha que, tal qual Clitemnestra, planeja com seu amante agir pelas costas do seu marido, embora não tenha chegado, ainda, a mencionar matá-lo.
Agora, se podemos ver que o gênero teatral das tragédias ecoa até hoje, é possível também dizer que as análises de Platão e Aristóteles sobre a arte e seu potencial formativo-moral são ainda válidas? Pensemos como eles... Provavelmente Platão diria, como muitos, que “essa novela tinha que ser proibida” e que “só ensina besteira”, e Aristóteles diria que “através dela nos imaginamos em certas situações, sem vivê-las”. Mas Platão estava disposto a arcar com o ônus de uma censura radical. E nós, estaríamos? Já não passamos por isso? E Aristóteles, disposto a arcar com o ônus de confiar no próximo, acabou fugido de Atenas para não ser morto. E nós podemos confiar nos outros? Só que, apesar da discordância, Platão e Aristóteles tinham algo em comum: heróis, na literatura, nos mitos, na vida, nas ciências, que forneciam parâmetros para as ações corretas e belas. E nós?... Quando torcemos por uma Nina, má até a medula, contra uma Carminha, má até o tutano, onde estão nossos heróis?

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