Judson Coelho
"Sempre foram tratados como ébrios e como loucos os homens extraordinários que realizavam grandes coisas, as coisas que pareciam impossíveis”
[Johann Wolfgang von Goethe]
Essa urgência que nos acomete. A necessidade das palavras, tão frágeis, que não obstante sustentam nosso mundo, nosso multiverso... mais do que palavra dita ou escrita, palavra costurada. Palavra encarnada, sulcando o tecido do real. Loucura¿ Talvez... ou talvez apenas uma manifestação estética de mais um navegante desse oceano de afetos em tormenta que é a vida...
O sergipano Arthur Bispo do Rosário (1909–1989) viveu por quase cinco décadas como interno da Colônia Juliano Moreira — antiga instituição psiquiátrica que abrigava aqueles que eram considerados "anormais” ou "indesejáveis” — em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, diagnosticado como esquizofrênico paranoico. Pouco se sabe de sua história antes da internação, mas sabe-se que fora, dentre outras coisas, marinheiro, boxeador e biscateiro, até que, ao fim de 1938, teria tido alucinações e delírios que o conduziram ao Mosteiro de São Bento, onde anunciou a um grupo de monges que era um enviado de Deus, encarregado de "julgar os vivos e os mortos”. Após o ocorrido foi detido pela polícia, como indigente, e encaminhado ao hospício.
Num dado momento, Bispo começou a produzir artefatos reaproveitando materiais de seu cotidiano, como lençóis, roupas velhas e até mesmo lixo — organizando uma espécie de "inventário do mundo” — que mais tarde seriam considerados arte de vanguarda.
O que mais me interessa em sua obra não são tanto as obras em si — por mais ricas e enigmáticas que sejam — mas as falas ou relatos daqueles que tiveram algum contato, direta ou indiretamente, com o artista sobre suas obras. É nessa interação que a arte ganha corpo, deixa de ser apenas o objeto exposto, deixa de ser a dureza da aparência e se fragiliza, ganha contornos subjetivos que não podem ser circunscritos num espaço ou tempo e que se transfigura à medida em que nosso próprio olhar se torna parte desse corpo.
Arthur acreditava ter uma missão divina e talvez o tivesse de fato. Uma obra pela via da desconstrução. A desconstrução da própria loucura; a desconstrução da sanidade — e da santidade (!) —, uma desconstrução da linguagem, resultando na própria desconstrução da arte. Bispo acaba nos revelando que o divino está no próprio elemento humano, entranhado na vida e no cotidiano.
Chamam-no de artista, e não se pode negar, porém, se arte — do latim ars — quer dizer "feito com perícia ou técnica”, não vejo aquele sujeito como um artista. Suas produções eram urgentes, necessárias, transbordantes; vejo alguém que exercia vida, a todo instante, alguém que gritava frente a uma existência embotadora, fria e cruel, alguém que encontrou em si um mundo e por isso pôde seguir vivendo.
Para muitos, Bispo do Rosário ilustra o debate sobre os limites entre a genialidade e a loucura e o papel/lugar da arte nessa condição. Talvez não faça diferença, afinal...
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