Nosso estilo de vida atual, extremamente urbano, tem seus privilégios, seus benefícios, digamos assim: podemos viver na cidade, com alta densidade tecnológica e muito conforto no caso das classes mais abastadas. Mas há uma situação grave de desigualdade no Brasil. Por causa da violência que ela envolve, abrimos mão de tudo o que é público. Da educação pública, da saúde pública, do transporte público, do espaço público.
Confinamos as crianças nesse mundo de quatro paredes. Nesse confinamento, que já é por si só um prejuízo, ainda enchemos a agenda delas de compromissos, porque os pais estão trabalhando o dia inteiro, ou então acabamos colocando os filhos em creches e escolas por 10, 12 horas.
Há quem contrate babás, mas essas ficam muito em casa, as famílias tendem a ficar mais em casa ou ir ao shopping, pela segurança dos shoppings. Então, a criança está sempre cercada de cimento, de publicidade, de consumismo.
Essência da infância
Outra característica desse estilo de vida é o uso da alimentação industrializada, se afastando da natureza também na mesa. Isso tem um custo, porque essa alimentação é rica em substâncias nocivas, em excesso de açúcar, de sal, de gordura vegetal, corantes, conservantes.
Os pais não têm tempo para cozinhar em casa, estão sempre trabalhando e, à noite, ou estão cansados, ou assumem outros compromissos, o que gera falta de convivência com os filhos. E existe ainda o excesso de telas (novas tecnologias), porque é difícil você conter, em casa, a energia natural de uma criança, que precisa se expandir, precisa correr, pular, brincar.
As telas estão sendo usadas precocemente, onipresentemente. Tudo isso leva a prejuízos já mensuráveis à qualidade de vida, ao comportamento, ao desenvolvimento, afetando não só a felicidade da criança como o adulto em que ela se transformará.
Brincar é a essência da infância, é como a criança se torna mais feliz e mais capaz de aprender o mundo, aprender a ler o mundo, a ler as relações e desenvolver uma série de habilidades, como coragem, agressividade, colaboração, negociação, resolução de problemas. A brincadeira prepara a pessoa do futuro.
“Aulinha disso e daquilo”
Os pais, muitas vezes, não têm alternativas: os dois trabalham. Quando têm possibilidade de ter alguém para ficar com a criança em casa, parente ou empregada, é bem melhor do que colocar na escola em tempo integral. E melhor ainda é não colocar o filho em muitas atividades.
Esse excesso de adultização, de escolas de tempo integral, aulinha disso e aulinha daquilo, de temas de casa que precisam de duas horas para serem feitos, isso tudo vai transformando a criança em uma espécie de executivo, e a infância acaba.
Estamos criando crianças que deixam de ser crianças, portanto, deixam de ser felizes e vão se tornando adolescentes e adultos deprimidos e com dificuldade de lidar com a vida. É fundamental, na infância, tempo para brincar livre.
E a criança só aprende brincando com outras crianças, sem supervisão, a não ser a supervisão distante do adulto, de segurança, mas é fundamental que ela tenha esse direito à liberdade. A brincadeira prepara a pessoa do futuro.
*Daniel Becker (foto) é pediatra
(Leia entrevista na íntegra no site https://gauchazh.clicrbs.com.br)
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