O filme O Senhor do Labirinto começa numa abafada noite de 22 de dezembro de 1938, quando, guiado por um imaginário exército de anjos, Arthur Bispo do Rosário sai pelas ruas do Rio de Janeiro com o propósito de anunciar ao mundo que é o "Enviado”, e que está encarregado por Deus de "julgar os vivos e os mortos”. Diagnosticado como esquizofrênico-paranoico, Bispo é internado na Colônia Juliano Moreira. Em meio à clausura e à violência desta instituição psiquiátrica, ele produz, ao longo de 50 anos, assombrado por misticismos e alucinações, um acervo de 1.000 obras, entre bordados, estandartes e assemblages com insuspeitos traços de arte pop contemporânea.
O longa-metragem de ficção foi baseado no livro "Arthur Bispo do Rosário – O senhor do labirinto” (Ed. Rocco) de Luciana Hidalgo, com direção de Geraldo Motta, co-direção de Gisella Mello, trilha sonora de Egberto Gismonti e direção de arte de Sérgio Silveira. O diretor e a escritora também são responsáveis pelo roteiro. O filme estreou semana passada (11 de dezembro), depois de passar pela Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e vencer o prêmio de melhor filme na escolha do júri popular do Festival do Rio.
Arthur Bispo do Rosário perambulou numa delicada região entre a realidade e o delírio, a vida e a arte. Em sua cela no Hospital Nacional dos Alienados, na Praia Vermelha, o paciente produziu mais de mil obras consagradas no mercado internacional de arte contemporânea.
Dizia-se um escolhido do todo-poderoso, encarregado de reproduzir o mundo em miniaturas. Eram suas "representações”, afirmava. Curiosamente, em vida, Bispo recusava o rótulo de "artista”, dado o caráter divino de sua tarefa. Mas a potência de sua obra ignora limites e até hoje atravessa fronteiras, transgredindo convenções.
A história da "loucura” de Bispo remonta à noite de 22 de dezembro de 1938, quando, aos 29 anos, conduzido por um imaginário exército de anjos, andou pelas ruas do Rio com um destino certo: ia se "apresentar” na igreja da Candelária, no Centro. Terminou no Mosteiro de São Bento, onde anunciou que era um enviado, incumbido de "julgar os vivos e os mortos”.
Detalhes dessa narrativa, meio real meio ficcional, constam de um estandarte bordado por Bispo, que mistura autobiografia e autoficção. É nesse estandarte que Bispo registra a frase-síntese de sua vida e obra Eu preciso destas palavras – Escrita. A palavra tinha para ele status extraordinário, por isso seus bordados estão repletos de nomes de pessoas, trechos poéticos, mensagens.
Aquela noite foi um divisor de águas psíquico para Bispo. Era Natal, ele se convertia na figura de Jesus Cristo, mas acabaria sob o domínio da psiquiatria. Interditado pela polícia dois dias após a sua "anunciação”, foi enviado ao Hospital Nacional dos Alienados, na Praia Vermelha, onde rótulos não tardariam a marcar sua ficha: negro, sem documentos, indigente.
Após algumas semanas de internação e sem que ninguém o reclamasse, Bispo foi transferido para a Colônia Juliano Moreira. Chegou agressivo, passou um tempo preso, mas logo aprenderia a se virar. Enquanto serviu na Marinha, dos 15 aos 23 anos, praticou o boxe, entregando-se de corpo e alma ao pugilismo. Guardas e enfermeiros logo viram nele um aliado. Forte e sisudo, o ex-boxeador rapidamente se tornou "xerife” do pavilhão, o que assegurou-lhe posição privilegiada na hierarquia da instituição e lhe permitiu recusar eletrochoques e medicações.
Acostumado a conter pacientes à sua volta, Bispo conquistou a confiança de funcionários — e pouco a pouco aprendeu também a se conter. Quando percebia os sinais da sua "transformação”, ele pedia para um enfermeiro de sua confiança trancafiá-lo, passando o cadeado pelo lado de fora da cela. E ali permanecia, às vezes por meses seguidos. Não aceitava refeições, passava fome: "Vou secar pra virar santo”, prometia.
Foi nessas fases de isolamento que a arte mais brotou. Na falta de material, Bispo desfiava o próprio uniforme azul do manicômio, e aproveitava fio por fio. Assim começou a cerzir o Manto da Apresentação, espécie de mortalha sagrada que bordaria durante toda a vida para vestir no dia do Juízo Final, na data da sua "passagem”.
Nos braços da Virgem
Bispo costumava apagar o seu passado, dizendo apenas: "Um dia eu simplesmente apareci”. Mantinha o mistério sobre sua cidade natal. Ele contava a história do seu "aparecimento” no mundo pelos braços da Virgem Maria, a quem chamava de mãe. O pai era São José e ele, Jesus Cristo. No entanto, na igreja matriz de Nossa Senhora da Saúde, na praça central de Japaratuba (Sergipe) se encontra a prova de que Arthur Bispo do Rosário foi batizado no dia 5 de outubro de 1909, aos três meses.
Ao se situar à margem do cotidiano do hospício, numa época em que a psiquiatria transformava os manicômios em campos de experimentações, ele se ilhava numa cela e se esforçava para construir um outro mundo. E nesse universo era rei. Sobre a sua própria situação e a de seus colegas, tinha opiniões muito particulares: "O louco é um homem vivo guiado por um morto”, dizia. Ou: "Os doentes mentais são como beija-flores: nunca pousam, ficam a dois metros do chão”.
Nos primeiros tempos, num dos intervalos das "transformações”, ele voltou algumas vezes ao casarão da rua São Clemente, em Botafogo, onde a família Leoni mantinha o seu quarto. Bispo conheceu os patrões após um acidente de trabalho na Viação Excelsior, onde prestava serviço como borracheiro, após deixar a Marinha. Humberto Leoni foi o advogado encarregado de uma ação trabalhista a seu favor contra a empresa. Bispo ganhou a causa e um emprego: virou o faz tudo da família e ali morou, até ser arrastado pelas hordas de anjos e encaminhado para o hospício. Em troca de comida e moradia, fazia pequenos serviços domésticos, mas não aceitava pagamento. Nos anos 60, Bispo voltou de vez à Colônia. Passaria as décadas seguintes preparando-se para a "passagem”.
Em 1982 o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro expôs alguns exemplares do universo de Bispo numa coletiva reunindo presidiários, menores infratores e idosos, intitulada À margem da vida. A princípio ele não quis participar, mas depois cedeu algumas obras. Na época, o crítico de arte Frederico Morais ofereceu-lhe uma sala inteira para exposição no MAM, onde Bispo poderia se espalhar e se alojar por um tempo. Ele sequer pensou no assunto.
Morreu na solidão de sua cela, em 1989, sem ver seu império classificado como obra de arte percorrendo o mundo. Mas, aos olhos da crítica e do público, era já um artista.
(Trechos do artigo de Luciana Hidalgo publicado no site da Revista Mente e Cérebro)
Crítica
Arte bordada ponto a ponto
Neste ano em que o audiovisual brasileiro se rendeu às cinebiografias, com títulos como "Getúlio”, "Irmã Dulce”, "Tim Maia” e (o vigoroso) "Trinta”, "O Senhor do Labirinto” chega às telas para oxigenar um filão desgastado — por narrativas "palavrosas” — nas quais o diálogo tem mais relevância do que a força da imagem.
Seu diferencial vem de um delicado trabalho de direção de arte, assinado por Sérgio Silveira, que traduz, a partir da escolha de cores e de uma disposição inusitada de objetos em cena, todo o gênio (e toda a esquizofrenia) de seu biografado: o artista plástico Arthur Bispo do Rosário (1909-1989).
O cineasta Geraldo Motta, em codireção com Gisella de Mello, extraiu o que há de poético no obrigatório livro homônimo de Luciana Hidalgo sobre Bispo, a fim de encenar sua vida de maneira não convencional. Sua abordagem é menos preocupada em interpretar a psiquê acidentada do artista e mais interessado em expor as estratégias de sobrevivência dessa sanidade eclipsada em um ambiente de confinamento: a Colônia Juliano Moreira.
Apoiado na entrega generosa de Flávio Bauraqui, o filme tenta compreender o comportamento de Bispo em relação ao ambiente onde ele viveu durante anos, transformando o espaço num ateliê, onde criava usando lençóis bordados, bonecas e quinquilharias.
A medida desse ambiente é dada pela figura de Wanderley, guarda amigo de Bispo, defendido com o brilho em contínua renovação de Irandhir Santos. A maquiagem que envelhece Bauraqui é deficitária, mas não ofusca o talento do ator e a relevância visual do longa.
(Crítica de Rodrigo Fonseca, publicada em O Globo, em 10 de dezembro de 2014)
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