Armando Lemos

domingo, 19 de outubro de 2014
por Jornal A Voz da Serra
Armando Lemos
Armando Lemos

Ana Borges

A medicina oferecida pelo serviço público deveria ser motivo de orgulho para médicos e pacientes. Ser de boa qualidade deveria ser a regra, nunca a exceção. Assim pensam os médicos, por ela anseiam os usuários. Um desses médicos é o neurocirurgião Armando Lemos, que, sem vislumbrar solução, por menor que fosse, em curto ou médio prazo, e não suportando mais a precariedade das condições de trabalho, pediu demissão do Hospital Municipal Raul Sertã. Ali, ele passou 12 anos, lutando contra toda a sorte de dificuldades. Contemporizando, engolindo em seco as frustrações, driblando um problema e outro, apegando-se, diariamente, à ideia do sagrado dever de salvar vidas, ele foi levando, como se diz. Mas, esta semana, desistiu. Não de livrar seus pacientes de dores e de salvar suas vidas — que estas são e sempre serão o motivo de sua luta diária, enquanto viver —, mas exatamente por saber ser impossível cuidar dos doentes diante da total e recorrente falta de condições para atendê-los. Com o coração apertado, angustiado, deu um basta. Com os sentimentos ainda aflorados, Dr. Armando Lemos nos concedeu esta entrevista exclusiva.  


A Voz da Serra - Neurocirurgia é uma especialidade de alta complexidade, como sabemos. Trabalhar numa unidade hospitalar onde, quase sempre, falta o básico, onde uma autoclave fica uma semana quebrada, como é possível trabalhar? 

Dr. Armando Lemos – Não é possível. E foi pela absoluta falta de condições, de estar cansado de esperar que as coisas mudassem, esgotadas todas as minhas possibilidades de ainda acreditar numa solução, que eu pedi demissão. No dia 16 de setembro entreguei minha carta, cumpri o aviso prévio, e ontem (15) foi meu último dia de trabalho lá.


Com que sentimento o senhor saiu?

Quando entreguei o meu pedido de demissão, pensei que hoje estaria aliviado, que tiraria um peso dos ombros. Nada disso. São sentimentos confusos, porque afinal não foram apenas os 12 anos que trabalhei ali que estava deixando para trás, mas incontáveis histórias, de vitórias e fracassos, de perdas e ganhos. Estou triste, mas ao mesmo tempo com uma sensação de paz, apesar de tudo. Juntamente com os colegas, perdi vidas, salvei outras. E saí de lá carregando tudo isso. Não é pouca coisa, não é simplesmente virar as costas, e acabou. Para exercer a medicina como propus, desde que entrei para a faculdade, a minha prioridade é a dignidade médica. Sem ela, não há respeito pela profissão. E essa é uma condição sine qua pra mim. Não abro mão dela. 


O senhor foi diretor do Raul Sertã. Como um neurocirurgião lida com uma questão tão diferente de sua formação original?

Antes de mais nada, sempre tive um diálogo muito bom com os colegas e funcionários de todos os setores. Na neurocirurgia, a minha postura nunca foi política, mas técnica. E como diretor (2008/2009) eu mantive esse diálogo, franco e aberto, a postura técnica, mas sujeito às limitações de orçamento. Aqui estamos falando de recursos, estrutura, salários, equipamentos, material, esse estorvo todo que atende pelo nome de burocracia, que atrapalha bastante. A gente tenta superar esses entraves da maneira mais racional e legal (no sentido da legalidade, da moral) possível, mas não pode deixar a questão política interferir. Mas... De qualquer maneira, quem aceita o cargo sabe que está assumindo o compromisso de dar um jeito. Se não consegue, deve sair. Se percebo que não vou corresponder ao que me propus, vou embora. Como fiz antes, como fiz agora. 


E a sua família, como reagiu?

A minha mulher, parceira, amiga e confidente, uma pessoa que eu amo muito, assim como nossos filhos, Caio e Letícia, sempre me apoiaram. A Cínthia (a esposa), coitada, passou um ano ouvindo as minhas lamúrias. E sem reclamar, devo revelar, sempre compreendendo o meu desânimo, mas tentando me dar força. Eu dizia pra ela: "Se eu não aguento mais falar, imagino você ter que ouvir”, e a gente até ria. No final, ela sugeriu: "Meu filho, sai, você não vai conseguir suportar mais”. Era o que eu precisava ouvir para decidir de vez. 


Com todo o avanço tecnológico que a neurocirurgia alcançou nos últimos anos, deve ficar ainda mais complicado saber que determinado problema poderia ser resolvido, se...

Hoje temos como fazer uma correção na coluna vertebral, retirar um tumor cerebral profundo, realizar procedimentos de alta complexidade, em todo o corpo humano. Mas sem recursos e equipamentos, enfim, são custos que os governantes não demonstram interesse em assumir. Agora, falar disso diante da (des)estrutura do Raul Sertã, francamente, soa como uma utopia, delírio, no mínimo, como uma piada de mau gosto. 


Mas o senhor deixou o serviço público?

Não. Estou trabalhando em dois hospitais públicos: em Araruama (estadual) e em Rio das Ostras (municipal). Em ambos encontrei ótimas condições e um ambiente funcional excelente, com equipes bem formadas que cumprem os plantões. Médicos não faltam, tem especialistas de todas as áreas, do pediatra ao neurologista. Também contei com uma excelente estrutura no Hospital São Lucas (foi diretor por cerca de três anos), e há um ano e meio estou na Unimed. Neste, tive um acolhimento carinhoso e animador, além da satisfação de poder contar com tudo que é necessário para trabalhar com dignidade. Está sendo muito gratificante fazer parte de seu corpo médico, inclusive como diretor. Eu gosto de militar nessas duas áreas: medicina e gestão. Se me dão condições, eu dou conta do recado. 


O maior problema da Saúde no nosso país é de recurso ou de gestão? 

É de gestão, embora a questão financeira não possa ser relegada. Mas hoje, se estou no Hospital Roberto Chabo (estadual de Araruama) e precisar botar um dreno no cérebro, tem; se precisar botar um aparelho de pressão intracraniana, tem; se precisar botar um parafuso, também. Tem tudo. Tem um sistema gerencial que organiza tudo. CTI, centro cirúrgico, leitos suficientes e equipamentos de ponta. É claro que tudo isso demanda recurso e a minha especialidade está entre as mais custosas. Mas aqui, o problema é mais de gestão do que recurso.  


O que o deixa feliz?

A maior satisfação pessoal que tenho é eliminar a dor, aliviar o sofrimento, resolver uma lesão. Às vezes, não consigo. Se um paciente tem um tumor maligno e não tem o tratamento realizado a tempo e de forma adequada, dificilmente ele vai sobreviver. Aí eu devo entender que, se não consigo curar, é meu dever dar mais atenção, ser solidário, pelo menos tentar, por todos os meios, tornar menos doloroso aquele momento que a pessoa está vivendo. Melhorar essa condição também é tratamento.


Como o senhor escolheu fazer medicina?

Sobre isso tenho uma passagem engraçada. A gente morava em Bom Jardim, meu pai era dentista e diretor do hospital, onde ele passava o dia inteiro. Geralmente as pessoas têm ojeriza a cheiro de hospital, não é mesmo? Aquele odor de éter, formol, enfim, típico. Pois, acredite, eu adorava (risos).  E eu ainda era bem pequeno, uma criança de 5, 6 anos. Quando meu pai chegava, eu ficava cheirando a roupa dele que nem cachorro cheirando o dono (mais risos). Bem, se vocação tem cheiro, esse era o cheiro da minha. Eu nasci para ser médico, quer dizer, já estava sacramentado quando vim ao mundo. Com 17 anos eu entrei para a faculdade. Fiz medicina na Uerj e residência e especialização no Fundão (UFRJ). 


Quer trocar de profissão?

Jamais, em tempo algum! Acredito em Deus, então, acho que ele me abençoou quando me fez nascer na minha família de origem, depois pela família que constituí, e pela vocação que me coube. Tenho quase tudo que sempre quis. Só falta poder cuidar da saúde das pessoas no setor público, com dignidade.

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