Dalva Ventura
Os leitores mais atentos das páginas policiais já devem ter se dado conta deste lamentável fato que vez por outra noticiamos. O crack subiu a serra e virou mercadoria fácil, comercializada por traficantes de drogas e consumido por um número cada vez maior de pessoas.
Não temos (ainda) cracolândias nem uma quantidade muito grande de viciados nesta droga potencialmente mortal e que provoca dependência física com uma rapidez impressionante. No entanto, o uso de crack vem preocupando muito as autoridades locais. O número de apreensões não chega nem perto da cocaína e da maconha, mas tem aumentado a cada ano. Da mesma forma, já é possível observar na rua pessoas nitidamente sob o efeito desta droga.
O delegado Flávio Narcizo, titular da 151ª DP, começa a se preocupar seriamente com a questão. “Hoje, quem quiser comprar uma pedra de crack, compra, não vai ter dificuldades para encontrar, embora a demanda nem de longe possa ser comparada com o álcool, a maconha ou mesmo a cocaína”, declara. A apreensão de crack na região também não chega a ser expressiva, como na capital ou mesmo em outras cidades do Norte fluminense, principalmente Campos e São Fidelis, afirma o delegado.
Em outras palavras, o crack ainda não é um grande problema por aqui, mas segundo Narcizo, é só uma questão de tempo. Por enquanto, também não tivemos nenhuma apreensão de oxi em Nova Friburgo, cuja composição é ainda mais tosca que a do crack e mata o usuário ainda mais rapidamente. Mas o delegado admite ter “bastante medo do crack” porque vê “a nuvem se aproximando, a cada dia”. Como afirmou, “o crack está chegando cada vez mais perto e o pior é que as pessoas ainda não se deram conta disso”.
Não acredita? Pois outro dia mesmo, em plena tarde de sábado, encontramos um grupo de dois rapazes e uma moça andando por numa das alamedas da Praça Getúlio Vargas, nitidamente sob efeito do crack. Uma cena triste, difícil de esquecer. Caminhavam até rapidamente, embora um tanto cambaleantes, num estado deplorável e deprimente. Não eram mendigos, como seus cabelos sujos e os andrajos que vestiam (de inspiração punk, grunge ou coisa que o valha) podiam levar a crer. Pareciam despojos humanos. Sua aparência era esquelética, com os ossos da face salientes e os olhos fundos, sem brilho, olheiras enormes e manchas na pele. Os braços e pernas de um deles, em especial, chamavam a atenção por serem extremamente finos. Não havia dúvidas. Droga alguma seria capaz de fazer isso com um ser humano senão o crack.
Talvez você, leitor, nunca tenha visto uma cena dessas, mas, não chega a ser um caso isolado. É só prestar atenção. Talvez não conheça sequer alguma história envolvendo o uso de crack. Mas, a julgar pelo depoimento do delegado e pela cena acima descrita, precisamos começar a nos preocupar com esta droga. Que, sutilmente, começa a se instalar na nossa cidade, com repercussões que sequer podemos dimensionar. Caso contrário, não vamos demorar a assistir cada vez mais a cenas deprimentes como esta ou, piores ainda, com crianças, adultos e velhos aglomerados em um ponto abandonado da cidade, completamente à mercê de seu vício.
Fim de linha ou começo de outra?
O uso do crack é considerado uma espécie de fim de linha no trajeto da dependência química e, não sem razão, deve ser motivo de grande preocupação. Não apenas das famílias, como das autoridades médicas, policiais e do governo. A verdade é uma só: nem todas as pessoas que bebem se tornam alcoólatras, assim como nem todas as pessoas que experimentam drogas se viciam, mas quem usa o crack tem a possibilidade de se viciar muito mais rápido.
E mais: além de ser seis vezes mais potente, o crack custa muito menos que a cocaína. Então, o usuário muitas vezes acaba substituindo uma droga pela outra, ainda mais letal e devastadora que a primeira. Só que a euforia causada pelo crack dura pouquíssimo—uns 15 minutos, se tanto—deixando em seu lugar uma tremenda sensação de desconforto, comum a outras drogas estimulantes, como depressão profunda, ansiedade e agressividade, só que elevado à potência mil.
Daí para a frente, as perspectivas são as mais sombrias. Os estudos mostram que além da destruição causada pela droga, a maioria dos usuários acaba cometendo roubos, furtos ou se prostituindo para sustentar o vício, sem dar a mínima para as consequências de seus atos.
Vale a pena contar a triste história de um rapaz de 22 anos, morador de uma cidade vizinha a Nova Friburgo, que morreu em consequência do crack. Sua família fez tudo para salvá-lo, mas não conseguiu. Acabou morrendo atropelado estupidamente, sob o efeito da droga. Até os 17 anos, ele estudava normalmente, namorava, assistia futebol na companhia da turma do colégio, gostava de jogar sinuca e, apesar de ser menor, dava suas escapadas para tomar uma cervejinha no boteco da praça. Por esse motivo, levava broncas homéricas do pai, mas ficava nisso. Da cervejinha para bebidas mais fortes e daí até a cocaína, foi um passo. Em pouco tempo, tudo nele mudou. Ficou abatido, parecia não se interessar por mais nada. Os pais não o reconheciam mais. Tornou-se agressivo, revoltado. Dormia o dia inteiro, quase não comia, parou de estudar, não ficava mais em casa. Típico.
O quadro foi piorando, mas mesmo assim, como é comum acontecer, a família não percebia o porquê daquele comportamento. Quando se deram conta de que algo estava errado, o menino já estava no crack, sabe-se lá há quantos meses. Nesta altura, tinha se tornado um farrapo humano. E então, o que fazer? Como lidar com esta situação? O pai agiu sabiamente. Procurou a ajuda de quem entendia do assunto, mas era tarde demais. O rapaz até chegou a ser internado numa clínica de recuperação de dependentes químicos, mas não ficou. A droga venceu.
Como assim, “não ficou”? É preciso entender como isso acontece. Para tratar um dependente químico ou mesmo um usuário de drogas, é preciso contar com a adesão ao tratamento. Algo, convenhamos, difícil de acontecer. Num primeiro momento, o mais comum, aliás, é que este usuário recuse, negando veementemente que precisa de ajuda. Geralmente, é preciso um bom trabalho de motivação para que aceitem a ajuda que lhes está sendo oferecida.
“É muito difícil vencer esta barreira”, afirma a doutora Betty Carranza de Bolaies, fundadora e presidente da Clínica Esquadrão da Vida, instituição filantrópica de recuperação de dependentes químicos, que funciona em Cachoeiras de Macacu. “Nos primeiros contatos, tem a fase de negação, acham que não está acontecendo nada, que estão no controle da situação”, afirma. Raramente um usuário de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, vai procurar sozinho um tratamento. Na maior parte das vezes, esta iniciativa é da família. E quase sempre é preciso insistir até que comecem a ver que estão vivendo em função da droga e aceitem ajuda. Trata-se de um processo delicado, penoso e nem sempre bem-sucedido.
E quando esta pessoa continua recusando o tratamento? Seria muita ingenuidade acreditar que esta pessoa entenda, mesmo depois de entrevistada e confrontada com sua realidade, e aceite se tratar. O que se deve fazer? Interná-la compulsoriamente? Esta é uma questão, no mínimo, controvertida. Muitos especialistas acreditam que, num primeiro momento, esta é a única opção.
Coloque-se na posição dos pais de um jovem que está usando crack ou mesmo outra droga pesada. Claro que ele não se encontra em condições de decidir se quer ou não quer enfrentar um tratamento. Como estes pais devem agir? Deixando que o filho se drogue até morrer? Claro que não.
Mas é complicado, pois nossas leis não permitem a chamada internação compulsória, já que o indivíduo tem livre arbítrio, isto é, pode querer ou não, ser tratado. No entanto, a maior parte dos especialistas luta contra isso, já que o envolvimento com as drogas tira das pessoas a capacidade de discernir o que lhe faz mal e pode até lhe matar.
Então, é difícil. O que se faz num primeiro momento, é motivar o usuário até que ele se convença de que precisa de ajuda, precisa se tratar. É difícil, mas não impossível. No caso do indivíduo que está correndo risco de vida, o que pode ser feito, num primeiro momento, é uma internação compulsória e depois de um breve período de desintoxicação, partir para aquele trabalho de conscientização e motivação de que falamos antes. Aí sim, já se pode ver uma luz no fim do túnel, pois ele se torna alguém em condições de optar ou não pela continuidade do tratamento.
Muitos continuam relutantes e recusando ajuda. Neste caso, a situação se torna ainda mais complicada. E não adianta dourar a pílula, afirmando que sempre dá certo. Infelizmente, a realidade não é esta. O problema das drogas (inclusive o álcool) é sério e complexo, envolve diversos aspectos, destruindo milhares de famílias pelo mundo afora, matando milhares de pessoas. Felizmente, também, a adicção, seja ela pela droga que for—inclusive o crack—não representa sempre um caminho sem volta.
Crack tem cura, sim
A boa notícia é que o dependente de crack pode se ver livre da droga, sim. Ao contrário do que se pensa e se ouve por aí, é possível tratar o vício do crack como se trata qualquer outra droga. Do alto de sua experiência de 18 anos cuidando de dependentes químicos, a doutora Betty Bolaies garante que a dependência ao crack tem tratamento e, melhor ainda, tem cura.
“Antigamente se falava a mesma coisa da cocaína e do alcoolismo”, diz. Ela tem acompanhado muitos casos bem-sucedidos. “Podemos dizer que estas pessoas estão realmente curadas, pois não usam drogas há bastante tempo e sua vida mudou, o que me deixa muito feliz”, continua.
Ela confirma que o Esquadrão da Vida tem recebido pacientes de todas as idades, que se tornaram dependentes desta droga—alguns deles aqui de Nova Friburgo. “Já recebi, inclusive, jovens com sintomas graves de abstinência. Já vi quadros terríveis, como o da chamada ideação paranoide, quando a pessoa sofre alucinações, imaginando que estão com parasitas dentro do corpo e começam a se cortar, na tentativa de eliminá-los”, conta.
No entanto, ela afirma que o tratamento do vício do crack é o mesmo do de outras drogas. “A abordagem é a mesma, as técnicas de intervenção e as terapias propostas, idem. O período de desintoxicação é que pode variar, assim como a resposta terapêutica, mas até isso depende de cada caso, em particular”, explica.
Uma vez aceito o tratamento, pode-se dizer que meio caminho está andado. “Depois de uma avaliação psiquiátrica, propomos uma internação a longo prazo—por um tempo médio de seis a sete meses—pois é preciso retirar a pessoa do meio em que vivia e da proximidade com a droga”, continua. Durante o período de abstinência, o paciente tem acesso a diversos tipos de terapia, individual e em grupo. Esta terapia não é medicamentosa e sua base é cognitivo-comportamental. Durante este período, o indivíduo tem acesso a um programa intenso de atividades. Fica ocupado o dia todo, participa de oficinas multidisciplinares, que vão da informática à reeducação do caráter. Com espaço garantido também para o lazer, com quadras de esporte, piscinas, lagos e muito contato com a natureza.
Mas engana-se quem pensa que, vencida esta etapa, a guerra estará ganha. Todo cuidado é pouco para não por a perder os trunfos conquistados, pois uma vez na rua, é grande o perigo de recaída. Para evitá-la, o Esquadrão da Vida tem um programa de prevenção de recaídas, já que a saúde pública não oferece ao dependente químico, o tratamento necessário.
Dados estarrecedores
* O consumo do crack atinge cerca de 0,5% da população brasileira. A maioria começa a usar crack entre 12 a 24 anos.
* Segundo o IBGE, a droga atinge a 1.200.000 pessoas no Brasil.
* A última pesquisa do Conselho Nacional dos Municípios mostrou que o crack está presente em 98% dos municípios.
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