Somos sete bilhões de histórias se esbarrando por aí
Acredito que não existem pessoas no mundo, mas histórias aprisionadas por pele e ossos. São elas que movem a raça humana: a vontade de ser transmitida para outra pessoa, o desejo de perpetuidade, a sensação de que a nossa vida não foi em vão e de que seremos recordados. O resto — dinheiro, fama, bens materiais, memórias — passa. A história não pode parar. É algo que observo: ninguém lembra dos outros pelo o que eles são, mas pelo conjunto de histórias que os formam. Somos sete bilhões de histórias se esbarrando por aí.
No passado, achava que existia algo de cruel em ser o destinatário das confissões alheias: meus amigos e conhecidos sabiam que eu gostava de escrever e me “presenteavam” com histórias não-solicitadas. Contudo, à medida que o tempo passava, uma estranha magia passou a acontecer: mesmo sem me identificar, mesmo sem dizer que costumo escrever, mesmo na presença de desconhecidos, ainda assim as histórias continuavam surgindo. Taxistas, pedreiros, garçonetes, seja lá quem estivesse na minha presença, a sua narrativa era passada adiante. Só havia uma conclusão possível: as histórias estão ao nosso redor, o tempo inteiro sendo contadas e recontadas, em um movimento infinito. Nós que não as escutamos, e toda a tecnologia humana é uma tentativa de calar a história do outro. Às vezes, a trama mais incrível e impossível está sendo contada enquanto digitamos no celular ou escutamos música, é só prestar atenção que seríamos capazes de ouvir. Uma perfeita metáfora seria o conto “Angústia”, de Tchekhóv: o cocheiro ansioso para contar a sua história e tendo que se deparar com a frieza e com a indiferença alheia, mas a angústia é tamanha que ele necessita contar e dividi-la um pouco com os outros. Assim é a Humanidade — um bando de gente solitária tentando encontrar um ouvinte, um só.
Com frequência, sou acusado de idealista, mas penso que o mundo seria um local bem mais interessante se voltássemos a ouvir as histórias alheias. Se escutássemos o que os outros têm para nos contar ao invés de tentar silenciá-los. Se deixássemos de falar e de pensar em nós mesmos e passássemos a ouvir mais. Aprenderíamos muita coisa sobre o ser humano. Com o necessário grau de abstração, inclusive poderíamos encontrar histórias capazes de se ajustar às nossas, e aprenderíamos com os erros e acertos dos outros.
Claro que é cansativo escutar as narrativas alheias. Em certas ocasiões, suplico mentalmente para que não me contem, para que me deixem um pouco no silêncio das minhas próprias histórias. Mas não adianta: elas surgem ao natural e, como sabem que as respeito, acabam ganhando o acréscimo da minha imaginação, passando a constituir uma memória. Misturam-se com as minhas, envolvem-se, entrelaçam-se, discutem e brigam, mas terminam por se acomodar. Assim, quando escrevo, dezenas de histórias anônimas ou de conhecidos se debruçam sobre cada palavra, espiando qual delas deixará a minha cabeça para visitar o papel.
Nunca saberemos quando as histórias alheias voltarão para o mundo, e neste momento me lembro de Murilo Rubião, o maior escritor de literatura fantástica que o Brasil já teve. Certa vez, em uma entrevista, o jornalista perguntou se ele se inspirara em Kafka para escrever os seus contos, e Rubião respondeu que não, pois lera Kafka depois de começar a escrever. A fonte de inspiração era a sua babá na infância, uma mulher que contava histórias incríveis antes dele dormir. Depois que escrevera os primeiros contos, Mário de Andrade lhe indicara a leitura de Kafka e, para Murilo Rubião, foi como encontrar um irmão há muito perdido, alguém que entendia o que estava querendo dizer. Às vezes, fico pensando se a babá de Murilo Rubião algum dia imaginaria que as histórias contadas para uma criança no quarto silencioso e na penumbra seriam a base da literatura fantástica brasileira. Também tento imaginar as histórias que ela contava e de como aquilo colidiu e se amoldou à imaginação de Rubião, até o momento de ganhar o mundo através de livros. Pois escritores não passam de grandes caixas de ressonância de centenas de pessoas anônimas, trocando histórias e as perpetuando por meio dos seus escritos.
Lembro disto na semana do Dia dos Namorados por um motivo, e é claro que é uma história. Não entrarei em detalhes, que são saborosos o suficiente para terem vida própria, pois é o amor impossível de um homem de 45 anos por uma mulher de 82. Esta mulher está morrendo de câncer, e o seu apaixonado, sem saber, fez-me a mais bela síntese do que seria o amor. Após confidenciar que a melhor parte da relação era a conversa que tinham no escuro depois do ato sexual, o homem disse: amar é estar com a pessoa que nos conta uma história e escuta a nossa. Tão simples, e tão complexo. Contar histórias foi a forma que Sheherazade encontrou para sobreviver à sanha assassina do sultão nas “Mil e Uma Noites”, mas talvez tenha gastado todas as suas noites engatando uma narrativa na outra simplesmente para ser amada.
Portanto, no Dia dos Namorados, meu desejo é que vocês contem histórias um para o outro — e construam, juntos, a melhor de todas.
Gustavo Melo Czekster é escritor, advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS, criador do blog Homem Despedaçado. Texto originalmente publicado em http://literatortura.com
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Amar é estar com a pessoa que nos conta uma história
Acredito que não existem pessoas no mundo, mas histórias aprisionadas por pele e ossos
sábado, 13 de junho de 2015
por Jornal A Voz da Serra
![Amar é estar com a pessoa que nos conta uma história Amar é estar com a pessoa que nos conta uma história](https://acervo.avozdaserra.com.br/sites/default/files/noticias/30-livro_0.jpg)
Em viagem recentemente realizada, observei um interessante fenômeno: basta anunciar o meu interesse sobre literatura fantástica ou sobre terror para que pessoas próximas comecem a contar algo ligado a tais temas. As histórias parecem ansiosas para encontrar um ouvinte, enxergando a minha aproximação como a sua última esperança de conseguir liberdade. Eu não as impeço de virem ao mundo, nem sequer tento cerceá-las ou me intrometer; também não tenho a postura blasé ou indiferente que detecto em muitos escritores. Não acredito que histórias tenham cor, classe social, idade, preconceitos ou etnias. Estou acostumado a escutar crianças, jovens e velhos, e tanto a imaginação ainda imberbe quanto aquela dotada de sabedoria possuem seus ritmos próprios. Quando o outro está envergonhado para contar a trama que lhe aflige ou com dificuldades para externar o seu pensamento, mantenho silêncio, pois sei que a omissão também é uma história. Se ela for forte o suficiente para se libertar, então será por mérito próprio, não por obrigação.
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