Gustavo Melo (*)
Uma das muitas coisas com que um escritor precisa se acostumar é com a existência de alucinações criativas. São frases e fragmentos desgarrados que insistem em se apegar na recordação, acendendo e apagando como as luzes de um vagalume no meio de um bosque. Da mesma forma que um náufrago no meio do oceano, o escritor permanece à deriva no meio de um manancial ininterrupto de histórias que fustigam a sua pele e tentam se apossar da sua alma. Perdoem os nossos silêncios ou as eventuais esquisitices: não é nada fácil manter a integridade quando um mundo de metáforas e de belezas ocultas tenta nos dissolver em meio a um cadinho de emoções.
Às vezes, as minhas alucinações criativas ingressam no meio do cotidiano, o que me faz caminhar por um mundo repleto de imagens poéticas. Queria não ter memória, mas não consigo esquecer; apesar de Kant dizer que um dos segredos da felicidade é "lembrar-se de esquecer”, eu não consigo, pois sou fraco. Não esqueço, e sempre lembrar é algo que acaba se tornando dolorido, uma faca espremida entre as costelas.
Em algumas ocasiões, deixo as alucinações saírem e percorrerem o mundo com a alegria dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse, mas os olhares que me são direcionados mostram desaprovação e medo. Não se deve abrir as portas do sublime para as outras pessoas. Não assim. Não fora de um contexto.
Então, o melhor é silenciar. Morder a língua. Impedir que a memória venha brincar nas areias da realidade, deixá-la protegida debaixo do guarda-sol.
No entanto, nos últimos dias, três alucinações criativas grudaram em mim de tal forma que a única maneira possível de me livrar delas é — talvez tolamente — um exorcismo através da escritura. Colocando no papel, talvez os fantasmas me abandonem, encontrando o necessário descanso. Escrever também é uma forma de sepultar agonias.
"Algo lindo, mas aniquilante”, está no poema
The rival, de Sylvia Plath
"Se a lua sorrisse, teria a sua cara.
Você também deixa a mesma impressão
De algo lindo, mas aniquilante.
Ambos são peritos em roubar a luz alheia.
Nela, a boca aberta se lamenta ao mundo; a sua sincera,
E na primeira chance faz tudo virar pedra.
Acordo num mausoléu; te vejo aqui,
Tamborilando na mesa de mármore, procurando cigarros,
Desconfiado como uma mulher, não tão nervoso assim,
E louco pra dizer algo irrespondível.
A lua, também, humilha seus súditos,
Mas de dia ela é ridícula.
Suas reclamações, por outro lado,
Pousam na caixa do correio com regularidade encantadora,
Brancas e limpas, expansivas como monóxido de carbono.
Nem um dia se passa sem notícias suas,
Vadiando pela África, talvez, mas pensando em mim.”
(Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça)
Sempre que olho para a lua, são estas palavras de Sylvia Plath que lembro. Linda. Aniquilante. Algo pode possuir estas duas características simultaneamente? Só o amor. Quem ama sabe o que é ser perseguido por uma bela imagem de forma implacável, algo que, ao mesmo tempo, consola e dilacera. As noites são longas sessões de tortura repletas de recordações; durante o dia, cercado por afazeres e tarefas, conseguimos nos esquecer e até debochar da lua invisível que se esconde no meio do céu repleto de enganadora claridade. No entanto, basta surgir a primeira estrela e o rastro iluminado no horizonte para a ausência voltar a nos assombrar.
Tanto a pessoa amada quanto a lua são peritas em roubar a luz alheia, pois o amor é a maior forma de vampirismo psíquico que sofremos: estamos ao lado de alguém que reflete e toma posse ciumenta da nossa essência. Ainda assim, só existe sentido na vida quando nos submetemos a ele, por mais ilógico que seja. Quanto mais tentamos esquecer, menos esquecemos, e este paradoxo atordoa — a capacidade de sermos drenados por algo que está além das nossas forças. Mesmo que a lua se esconda na África, o pensamento continua fixo na pessoa amada. Não podemos evitar a aniquilação, assim como não podemos evitar a lua.
* Gustavo Melo Czekster cursou a oficina de criação literária de Luiz Antonio
de Assis Brasil, em 2000, e a de Léa Masina, em 2001. É advogado e mestre em
Literatura Comparada pela UFRGS. Texto extraído de seu blog
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