Álbum de retratos
Sobre o piso da praça árida em seu concreto estúpido, pétalas salpicadas do flamboyant maravilha. Que maravilha!
Como confetes espalhados no chão, serpentinas agarradas nos postes, nos fios, entrelaçando nossos olhares no cordão que animado circunda o salão... o fio de água gelado nas costas, o sorriso da menina com sua espirradeira...
Retrato que jamais apagarei da minha infância, como os lírios empinados e brilhantes, gotejados de orvalho, em meio à neblina que encobria, feito véu, a Praça Getúlio Vargas nas manhãs da minha juventude.
Há coisas das quais sequer queremos lembrar. Mas outras, aquelas que guardamos na alma, ficam lá, reservas morais, sentimentais, ouro de mina, veio que nos liga às origens e é capaz de nos fortalecer e renovar o desejo de respirar e recomeçar. Inspirar e viver! Fazer-nos vivos!
Guardo aromas. Quando caminho pelos corredores do Colégio Anchieta me faço menino, me refaço e até me entendo. Quem sou é um pouco do perfume inconfundível daqueles corredores, aroma de madeira, sonho, juventude, travessura, realização.
Há também cheiro de clube. De sauna de clube, toalha nova, roupa de cama de mãe...
E fotografias guardadas no álbum pessoal de cada um, também existem. Imateriais. Folheamos quase sempre. Revisitamos. Lembramos pessoas, lugares, detalhes nas roupas e até calçados. Minha infância tem camisa de ban-lon, cacharrel, japona, conga, bamba... e o nobre leitor deve ter lembrado do seu kichute, amarrado como as chuteiras dos ídolos de futebol.
Viu? Não falei que todos nós temos nossos álbuns de retratos? Só precisamos folheá-lo vez por outra. De coração aberto e deixando que as emoções transbordem.
Não. Não esqueci o barulho que o tamanco Dr. Scholl’s fazia nas calçadas. Nem do cheiro de patchouli... nem do pregador travessinha que deslizava nos cabelos femininos lentamente, charmosamente, estilosamente...
Eu gostava também do "japonês”, cones abiscoitados vendidos nos tubos de metal. Para mim aquilo só existia aqui. Como os balões de gás, coloridos e pintados como se fossem doces confeitados de glacê.
A cocadinha do barulho tinha um aroma que se confundia com a figura doce e generosa do Sr. Latini ...Uhm.... o sabor indescritível do coco queimado vinha da lata coberta pelo tecido impecável e o guardanapinho cortado em papel colorido. Nada igual. Nada!
E passar em frente à Galeria São José sem sentir o perfume de amendoim, no cone de papel que guardava o último deles na parte mais fina com casca ou sem, ou envolto no saquinho de papel vegetal feito paçoca...
Acabou, é verdade. Deixamos que se fosse como outras tantas lembranças de uma cidade que está longe de ser aquela da nossa infância e juventude. Mas ainda podemos voltar no tempo. Saudosamente. Revigorando o desejo de preservar o que é nosso em vez de só nos tornarmos críticos. Descansados críticos que, acostumados a perder, confortavelmente nos acomodamos por detrás de disfarces da nossa fraqueza cidadã.
Abro despudoradamente o meu álbum de retratos e me refaço. E sei que muitas das memórias são compartilhadas. Fazem parte de um tempo, de muitas histórias, vidas entrelaçadas.
Não tenho medo. Revisito o álbum sempre que necessito insumos, combustível e gás para seguir em frente. Olhar para trás é um jeito de andar para frente. Como se fechasse os olhos para fora e os abrisse para dentro de mim. E quando as coisas já não me dizem nada, vou picotando em minúsculos pedaços, impossíveis de reconstituir, as lembranças que não me servem mais no álbum de retratos.
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