Por Felipe Dias
Há algum tempo venho abordando a questão homofobia e bullying no meu blog www.olivrodehelio.webnode.com.br. Infelizmente, não param de pipocar aqui e acolá casos que servem de “inspiração” para abordar o assunto. As últimas notícias que publiquei foram a do levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia a respeito do aumento do número de homossexuais mortos no Brasil em 2010 (250 casos confirmados, fora os não confirmados) em comparação ao ano de 2009 (198 casos), e a do caso das quatro meninas lésbicas agredidas num McDonald’s, em Taboão da Serra (SP), por dois homens e uma mulher.
Desde que comecei a discutir o tema, recebo e-mails relatando casos de agressão sofridos dentro e fora de casa. Uma das lições que aprendi com a vida foi que a melhor forma de resolver um problema é encará-lo de frente e conversar a respeito. Pensei em convidar personalidades assumidamente homossexuais para falar de suas experiências para provar que, apesar das adversidades, é possível ser respeitado. Porque, afinal, tirando a questão da notoriedade, somos todos iguais.
A cada momento, vemos celebridades emprestando suas imagens às lutas contra a violência urbana, câncer de mama, corrupção, extinção do mico-leão-dourado, entre outras. Por que não contra a homofobia? Fiz contato com muitas personalidades e, para minha surpresa, não demoraram a surgir candidatos, o que me incentivou a criar a coluna Aceitação, não. Respeito, sim.
Para a estreia convidei uma pessoa que foi fundamental no processo de entendimento da minha sexualidade. No ano em que o conheci, 1997, tinha apenas 20 anos. Fui seu estagiário em um seminário de cinema documental que ele ministrou na faculdade em que estudei. Eu era um jovem com mais medos e angústias do que certezas. Então, conheci essa pessoa assumidamente gay, mas respeitada por sua postura, ideias e, talvez até, por seu bigode de xerife de filme de bang-bang. Foi quando a minha ficha caiu. Nunca falei disso com ele. Só agora, 14 anos depois, tive a oportunidade de reencontrá-lo e admitir sua importância em minha vida. Nesta entrevista, o diretor, roteirista e professor Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, diz o que pensa:
Quando a homossexualidade surgiu em sua vida?
LUIZ CARLOS LACERDA, O BIGODE - Desde menino sentia atração por homens. Adorava o Tarzan com aquelas coxas de fora! Morava em Copacabana e os via na praia, jogando vôlei, saindo suados pra mergulhar; depois voltando, molhados. Adorava ver o Bellini, capitão da seleção brasileira de futebol, com seu calção apertado na bunda. Mas não tinha com quem dividir isso. Minha primeira experiência sexual foi com uma prostituta; depois com um amigo (sem penetração). E muita masturbação fantasiando os homens da praia, jogadores de futebol e artistas de cinema.
Como foi seu processo de aceitação desta condição? Tentou se convencer de que era algo passageiro? O que o levou a tomar esta atitude?
BIGODE - Eu também sentia atração por uma menina em quem dava uns amassos e numa mulher mais velha. Mas o meu tesão pelos homens era mais forte, mais visceral. Não queria aceitar que era homossexual porque naquela época (anos 60) você era discriminado pelos outros garotos (da turma da rua, do colégio, na família etc). Por várias vezes os vi espancando, violentamente, gays na rua, em plena luz do dia. Achava um absurdo e não queria que aquilo acontecesse comigo. Depois de algumas paixões platônicas, a primeira transa mesmo foi com o Lúcio Cardoso, meu escritor preferido. Eu tinha uns 16 anos. Ele era “assumido”, sinônimo de homossexual. Meu pai desconfiou. Eu não queria ter problemas em casa. Meu pai era marxista militante e eu também. Mas a paixão era mais forte do que a repressão. Essa paixão me deu certeza de que eu era gay. Mas só alguns anos mais tarde (aos 19), eu já não fazia questão de esconder. Foi difícil. Conflitos em família, na escola e, claro, a turma da rua me discriminou.
Que comparação você faz da época em que se assumiu para a de um jovem que se assume nos dias de hoje?
BIGODE - Hoje é mais fácil. Tem essa coisa do politicamente correto que ajuda os hipócritas a fingirem que nos aceitam. Acho que, no entanto, ganhamos com isso, embora nada tenha sido fácil. Foi muita luta de afirmação da nossa identidade, do nosso comportamento dentro da sociedade. Antigamente, os gays eram os bobos da corte que frequentavam os salões de beleza ou os salões das grã-finas (costureiros, decoradores, atores e diretores de teatro). Era chique uma perua ter o seu “viadinho” de estimação. Mas não podia se misturar, ter opinião, se impor como pessoa. Isso começou a mudar, pelo menos pra mim, quando eu vi o poeta Walmir Ayala, apesar de muito afeminado, falar de igual pra igual com as pessoas. Vi que também podia ser respeitado. Não queria ser “aceito”, não precisava desse aval. Queria ser respeitado. E consegui. No início fui até bastante agressivo. Expunha meu tesão por um homem, na frente de todo mundo—como fazem os machistas com as mulheres. Mas isso coincidiu com a revolução sexual, com o chamado “desbunde”—a agressividade fazia parte daquele show. Depois, tudo foi se acalmando.
Ter sido amigo de uma pessoa liberal e revolucionária como Leila Diniz o ajudou na questão da homossexualidade?
BIGODE - Leila era minha amiga de adolescência. Ela vivia um período também cheio de conflitos, tinha saído da casa dos pais. Perambulávamos pelas ruas de Ipanema. Dormimos muitas noites em escadas de prédios, em trens que iam até o subúrbio, em mesas de botequim e até na casa do Lúcio—que não quis assumir a relação comigo porque eu era menor e ele não era apaixonado como eu. Tinha outros jovens parceiros. Ela me apoiava e eu a apoiava. Mas eu só assumi mesmo, pra valer, publicamente, aos 20 ou 21 anos. Sozinho. A Leila não interferiu em nada. Apenas, como era uma pessoa verdadeiramente livre e minha amiga, aceitou como uma coisa normal.
Como o fato de ser homossexual reflete em seus filmes?
BIGODE - Todos os meus filmes, cada vez mais, têm personagens homossexuais, claro! E gosto de filmar os homens sob a ótica do meu desejo. Isso é inevitável. Principalmente quando estão nus. E o que tem de homem nu nos meus filmes!...
Você foi professor da Escola de Cinema de Cuba. Em agosto de 2010, Fidel Castro admitiu ter perseguido homossexuais entre as décadas de 60 e 70, tendo exonerado de cargos públicos, funcionários gays que foram enviados para campos de trabalho forçado. O que você conta sobre sua experiência neste país que durante anos viveu sob uma ditadura homofóbica?
BIGODE - Antes disso, em 1997, uma jornalista venezuelana fez uma longa entrevista com o Fidel, publicada no livro “Un grano de maiz” [Um grão de milho], onde ele pede desculpas aos cubanos pelo “erro político” da perseguição aos gays, e até sugere às famílias que os aceitem. Mas eu não acredito na sinceridade desse ditador que mandou matar e torturar milhares de pessoas por causa de suas orientações sexuais, como na União Soviética, de Stalin, e na Alemanha nazista. O que acontece é que pegou mal—volto a insistir no “politicamente correto” que nos ajuda em muitas situações. Mas até hoje os travestis são perseguidos e extorquidos pela polícia cubana. Os soropositivos são isolados num hospital no município de Los Cocos, como eram os leprosos no século XX e só visitam as famílias com um acompanhante enfermeiro. De qualquer maneira, a ficha caiu, pelo menos parcialmente. E é diferente do Irã, onde basta os gays serem denunciados por um vizinho para serem enforcados em praça pública—como pode ser constatado em sites, com fotos horrendas. Eu não tive problemas em Cuba, até porque vivia numa escola internacional, um território livre.
Você concorda que o Brasil é um país “gay friendly”, apesar dos casos de homofobia?
BIGODE - A formação étnica do Brasil é erotizada. A miscigenação, nossa maior riqueza e característica como afirmou Darcy Ribeiro, é resultado de uma grande sacanagem. O brasileiro gosta muito de transar. E isso, apesar da repressão da igreja católica, “não tem limites”—como canta Chico Buarque em “O que será, que será?”.
Muitas pessoas não concordam com a forma como as paradas gays acontecem, deixando de ser um movimento político-social para ser uma espécie de “micareta”. Qual sua opinião?
BIGODE - Política não precisa ser o exercício do mau-humor ou da formalidade. O exercício da alegria e do prazer—como escreveu Freud tratando da questão da repressão sexual—é político. Essas paradas são muito importantes também porque dão uma visibilidade absoluta para a sociedade. Apesar da tentativa de folclorização pela mídia, que só divulga as imagens dos travestis, involuntariamente estão politizando essa questão ao tirar da obscuridade e da sombra esses seres condenados à escuridão das ruas. Os travestis e os “trans” merecem todo o brilho que exibem à luz do generoso Sol que nasce todo dia para todos. Eu prefiro esse espetáculo vital, essa alegria, do que muito seminário acadêmico de bichas intelectualizadas e carrancudas.
Qual sua opinião a respeito da forma como o governo trata a questão LGBT?
BIGODE - Fico feliz de estar vivendo os dias que vivemos hoje e de poder assistir a inclusão social dos LGBT através de programas oficiais. Quando poderíamos imaginar a criação de uma Secretaria da Diversidade vinculada à Presidência da República, por determinação e coragem política do ator Sérgio Mamberti? Hoje, a maioria dos governos (do Rio, de Minas e de São Paulo, com certeza) criou essas secretarias. No Rio, o funcionário público gay tem direito à pensão do companheiro morto. Alguns juízes começam a dar o direito de adoção para casais homossexuais. Minha única frustração é o governo brasileiro ainda não ter resolvido no Congresso a questão da criminalização da homofobia. É uma contradição! A posição dos católicos e evangélicos, que fazem parte da sustentação política do governo no Congresso, é a razão desse impasse.
O que você espera do governo Dilma Rousseff em relação à questão LGBT?
BIGODE - Continuidade da política pública de apoio ao movimento LGBT e avanços nessas questões como a criminalização da homofobia. Já conquistamos a legalização da união civil de pessoas do mesmo sexo.
Qual a sua opinião sobre a forma como homossexuais são retratados na televisão brasileira?
BIGODE - Mesmo sendo caricaturas, acho importante. A sociedade brasileira hoje não pode mais esconder os altos índices de homossexuais entre seus pares. Se as novelas e os filmes quiserem se comunicar com um público mais abrangente, terão que retratar a sociedade como ela é em sua totalidade. Hoje é difícil não ter um ou mais personagens gays nas novelas. Mais uma vez o politicamente correto, apesar de hipócrita, está nos favorecendo.
Em 2010 foi noticiado que o programa “Clandestinos—O Sonho Começou”, da Rede Globo, levaria ao ar o primeiro beijo gay da televisão brasileira, mas a cena foi cortada da edição final. No passado outros programas também tiveram beijos gays cortados. Qual sua opinião a respeito deste fato?
BIGODE - Falei com a Glória Perez por telefone quando cortaram o beijo dos dois rapazes em “América”. Ela estava chateada porque escreveu a cena, foi gravada, mas a direção da televisão decidiu cortar. Mesmo quando a Censura Federal foi extinta no Governo Sarney, as TVs demoraram muito a absorver essa mudança. Acredito que estamos caminhando... Em outros tempos “matavam” os personagens gays num desastre encomendado. Mais importante do que o beijo em si é a existência de uma relação verdadeira, com afeto, conflitos; a sua relação plena com a sociedade, e não mais e apenas a caricatura. O personagem da Paula Burlamaqui em “A Favorita”, do João Emanuel Carneiro, era uma lésbica apaixonada pelo personagem da Lilia Cabral que emocionou o Brasil. Isso é mais importante do que o beijo em si.
Como você vê a forma como a questão LGBT é tratada pelo cinema brasileiro e internacional?
BIGODE - O cinema tem uma dívida muito grande com essa questão. Nisso a TV está mais adiante. E estou falando do mundo todo. Mas já há uma filmografia bastante significativa com essa temática.
No começo é comum nos sentirmos desorientados em relação à nossa postura diante do fato de sermos homossexuais. Que conselho você dá para quem está passando por isso?
BIGODE - O único conselho que dou é para não aceitarem conselhos de ninguém. Cada um sabe o que fazer da sua vida, pois cada existência tem sua própria história. O mais importante é você se aceitar. O resto vem com o tempo.
Muitos jovens me escrevem falando sobre o fato de ainda não terem se assumido para suas famílias e amigos. Uns alegam medo da reação das pessoas, outros dizem que ainda se acham muito novos para isso, e alguns acreditam que possam viver uma vida aparentemente heterossexual (casamento, filhos etc.) alternada com momentos em que se permitam relações homossexuais. O quê você tem a dizer para eles?
BIGODE - Tenho amigos e conhecidos que levaram uma vida inteira mentindo para as esposas, os filhos e a si mesmo. Essa é a maior infelicidade que um ser humano pode viver! Depois se arrependem do tempo perdido. Aí é tarde.
Para encerrar, passe uma mensagem para nossos internautas/leitores.
BIGODE - O mais importante na vida é procurar ser feliz.
Sobre Luiz Carlos Lacerda, ou Bigode:
Filho do produtor João Tinoco de Freitas, membro do Partido Comunista Brasileiro, que ajudava a financiar filmes nos anos 50, como “Rio 40 Graus” (1955), de Nelson Pereira dos Santos, LC Lacerda começou no cinema aos 19 anos como assistente de direção de “Onde a Terra Começa” (1965), de Ruy Santos. Sua escola no cinema foi o set dos filmes de Nelson Pereira dos Santos, de quem foi assistente de direção nos filmes “El Justicero” (1966), “Fome de Amor” (1967), “Azyllo Muito Louco” (1969), “Como Era Gostoso o Meu Francês” (1970), “Quem é Beta?” (1972) e “Amuleto de Ogum” (1973).
Estreou na direção com “Mãos Vazias” (1971), uma adaptação do romance homônimo de Lúcio Cardoso, e em 1978 dirigiu “O Princípio do Prazer”, no qual aborda o incesto. Nos anos 80, fez filmes publicitários, produziu seriados e novelas para a Rede Globo e assinou alguns vídeos. Em 1987 filmou o sucesso “Leila Diniz” (1987), cinebiografia da atriz, interpretada por Louise Cardoso. Realizou e roteirizou cerca de 30 curtas sobre personagens da cultura brasileira como Nelson Pereira, Lúcio Cardoso, Cecília Meireles, Ernesto Nazareth, Antônio Parreiras, Quirino Campofiorito, Walmir Ayala, Oduvaldo Viana Filho, Alex Viany, Anísio Medeiros, Paulo Villaça, Arduíno Colasanti, Vatenor, Júlio Paraty, Zé Tarcísio, Ângelo Agostini, Mário Faustino e Alair Gomes.
Na produção, participou de “Chuvas de Verão” (1978), de Carlos Diegues, “Eu Te Amo” (1981), de Arnaldo Jabor, “O Homem da Capa Preta” (1986), de Sérgio Rezende, entre outros. Dirigiu “For All – O Trampolim da Vitória” (1997) e “Viva Sapato” (2004). O primeiro conta a história no estilo chanchada sobre a presença do exército americano na cidade de Natal (RN), durante a Segunda Guerra Mundial, e o segundo é uma coprodução Brasil/Espanha, filmada no Rio e em Havana. Bigode foi professor do curso de cinema da Escola de Cinema de Cuba (1992 e 1993) e da Universidade Estácio de Sá.
(Fontes: Filme B e Wikipedia)
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