Abertura dos arquivos da ditadura revira história no Brasil

quarta-feira, 31 de dezembro de 1969
por Jornal A Voz da Serra
Abertura dos arquivos da ditadura revira história no Brasil
Abertura dos arquivos da ditadura revira história no Brasil

População cerca a casa de ex-militante do regime e pede por justiça. Para especialista, abertura dos arquivos é apenas “a ponta do iceberg”

Alessandro Lo-Bianco

De acordo com o livro “Sociedade Brasileira: uma história—Através dos Movimentos Sociais”, opositores, na maioria dos governos da história brasileira, são intimidados e marchas e manifestações são diluídas por meio da violência e abuso de autoridade, como ocorreu recentemente em São Paulo, quando estudantes e simpatizantes a favor da liberdade de expressão foram duramente espancados pela polícia. Com a abertura dos arquivos da Ditadura, debates começam a florescer na sociedade e uma questão é posta em dúvida: condenar ou manter a lei irrevogável de anistia?

De acordo com o historiador José Murilo de Carvalho “assassinatos com motivação política não foram raros durante a ditadura do Estado Novo” (1937-1945). José Murilo relata como a violência do Estado antecede a Ditadura que consta nos livros. São milhares de crimes sem investigação e que, sem a mínima razão, uma lei de anistia concedida aos militares os isenta de acertarem as contas com a Justiça. Segundo um dossiê de atentados políticos publicados por José Murilo, um médico da Polícia Militar, Nilo Rodrigues, por exemplo, disse ao jornalista Vitor do Espírito Santo ter presenciado fatos de alarmar: “Espancamentos horrorosos, vários assassinatos dentro da Polícia Especial”. Mas, devido à censura à imprensa, poucos desses crimes vieram a conhecimento público. Quase todos foram abafados nos porões das delegacias.

Segundo publicação da Revista de História da Biblioteca Nacional, a tortura de presos foi investigada e descrita pelo jornalista David Nasser, inicialmente em seis reportagens publicadas na revista O Cruzeiro—a primeira dela em 29 de outubro de 1946—e depois em livro de 1947. As publicações foram intituladas “Falta alguém em Nuremberg”. Esse alguém era o capitão do exército Filinto Muller, chefe de Polícia da capital de 1933. Os principais instrumentos de tortura mencionados no Congresso e registrados por David Nasser eram: o maçarico, que queimava e arrancava pedaços de carne; os “aldefis”, estiletes de madeira que eram enfiados por baixo das unhas; os “anjinhos”, espécie de alicate para apertar e esmagar testículos e pontas de seios; a “cadeira americana”, que não permitia que o preso dormisse; e a máscara de couro. Poucos torturados resistiam. Houve quem se suicidasse pulando do terceiro andar da sede da Polícia Central; outros enlouqueciam, como Harry Berger, membro do partido comunista alemão, torturado durante anos com sua mulher. Aos sobreviventes, restaram apenas sequelas para o resto da vida no corpo e na mente.

Ainda de acordo com o historiador José Murilo de Carvalho, os acusados eram processados e julgados pelo Tribunal de Segurança Nacional, criado logo depois do levante comunista de 1935, ainda antes do Estado Novo. Apesar da Anistia concedida por Vargas, em 1945, houve, na constituinte de 1946, tentativas de investigar e punir os crimes cometidos pela polícia no Estado Novo.  Mas não deu em nada e a Constituinte encerrou as atividades em setembro de 1946 sem nenhuma conclusão concreta.

Segundo manifesto do general Euclides de Oliveira Figueiredo, deputado eleito pela União Democrática Nacional (UDN) do Distrito Federal e pai do futuro presidente João Batista de Oliveira Figueiredo, que, contrariando os próprios militares, pediu profundas e severas investigações no então Departamento de Segurança Pública para conhecer e denunciar a nação os responsáveis pelo tratamento dado a presos políticos, “a matéria não é daquelas que podem ser esquecidas. Trata-se de fazer justiça, descobrir e apontar os responsáveis por crimes inomináveis praticados com a responsabilidade do Governo. Ao menos se conheçam os responsáveis pelas barbaridades, a fim de que outros, mais tarde, tenham receio de ver, ao menos, seus nomes citado. Dessa época, os principais acusados eram Serafim Braga, chefe do Dops, o tenente Emílio Romano, chefe do Departamento de Segurança Pública, o tenente Euzébio de Queiroz, chefe da Polícia Especial, e o policial Alencar Filho, da Seção de Explosivos da polícia. Um dos depoimentos mais dramáticos foi o de Carlos Marighela, deputado pela Bahia do Partido Comunista do Brasil, dado em 25 de agosto de 1947. Ele descreveu várias torturas que sofreu ou que presenciou. Entre elas, espancamento com canos de borracha, aplicado na sola dos pés e nos rins, queimaduras. Se tratando de presas, as atrocidades eram inimagináveis. Nenhum sobrevivente conseguiu denunciar a tortura que sofreu na época, pois a maioria alegou que “as pessoas que se encontram no poder são as mesmas que praticaram as mencionadas violências”.

A Ditadura continuou e o ano de 1964 chegou. De lá pra cá, crimes são tratados pelo governo como “não investigáveis” devido à lei de anistia, a exemplo do assassinato do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo. Nos casos de crimes e torturas cometidas por meio de regimes ditatoriais, em que a impunidade sorri apoiada numa lei de anistia irracional concedida a militares torturadores e assassinos, fica uma herança maldita: punir ou perdoar os criminosos do passado.

Na semana da Rio+20, cerca de 2.500 pessoas cercaram o prédio de um militar no bairro da Urca e pediram “justiça” pelos crimes cometidos na época do regime. O ato foi realizado pela Articulação Nacional pela Verdade e Justiça junto com a Via Campesina. O objetivo foi denunciar ex-agentes que participaram direta ou indiretamente da ditadura militar e que não foram punidos. Os manifestantes pediram o direito à verdade e à justiça. “Queremos denunciar essa impunidade. Temos o registro de mais de 400 torturadores que não foram punidos e vivem hoje em dia como se nada tivesse ocorrido. Vamos aproveitar o momento que o Rio vive para chamar a atenção da Justiça e da população para essa impunidade”, disse um dos manifestantes.

A concentração do ato começou na Avenida Pasteur (Urca), em frente à Unirio, por volta das 8h. De lá, os manifestantes seguiram até a Rua Lauro Müller, em Botafogo, onde mora o suposto torturador, identificado como Dulene Aleixo Garcez dos Reis, que era capitão da Infantaria do Exército em 1970. De acordo com o movimento, Dulene participou da tortura ao jornalista e secretário geral do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), Mario Alves. Ele foi morto dentro do 1º Batalhão de Polícia do Exército, na Tijuca.  

Além de constranger militares, o objetivo dos manifestantes é pressionar a comissão da Comissão da Verdade para que haja punição aos torturadores do regime militar. Em frente ao número 96, os manifestantes gritaram palavras de ordem como “torturador” e “assassino”, e cantaram ao som de instrumentos de lata. Seu vizinho é um torturador, seu vizinho é um torturador—gritaram paras as pessoas que observavam, da janela, o protesto.

Um dos moradores do bairro, o sargento reformado da Marinha Eunicio Precílio Cavalcanti, de 79 anos, se emocionou com a manifestação realizada pelos cerca de dois mil jovens. Ele foi uma das vitimas dos torturadores na Ditadura Militar. Eunicio contou que foi cassado, torturado e preso por três anos. “Passa um filme da minha vida. Eu nem sabia que os jovens de hoje se preocupavam tanto com esse assunto, que para muitos já foi esquecido. O jovem tem que continuar carregando essa bandeira, não entregar a bandeira da esquerda para esses marginais. É um momento histórico e me faz acreditar que o Brasil esta em boas mãos. Essa pilantragem e covardia tem que acabar. Tá na hora de fazer justiça”, disse ele.

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