Amanda Heiderich nasceu de uma família de Lumiar, em 16 de junho de 1983, e seguiu um caminho diferente do da maioria dos jovens da localidade. Hoje, aos 28 anos, é professora de língua portuguesa em escolas do estado, do município e da rede privada de Nova Friburgo, onde dá 44 horas-aula semanais para cerca de 400 alunos, além de cursar o doutorado em letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e de ter a responsabilidade de corrigir provas do vestibular da mesma universidade.
Seu primeiro caminho foi o jornalismo. Passou, em 2003, nos vestibulares para o curso de Letras da Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia, para o primeiro semestre, para Comunicação Social na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), onde conseguiu bolsa integral pela sua colocação no vestibular, para o segundo semestre, e para o curso de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Neste último não chegou a se matricular. Em seu primeiro ano de universidade, cursou Letras, no primeiro semestre, e Comunicação, no segundo, optando finalmente por Letras e pelo magistério, formando-se em 2007. Logo depois de concluído o curso, passou na prova para o mestrado na UFRJ, tendo como tema de dissertação o discurso e a intenção, aplicado ao estudo comparativo de edições dos jornais Extra e O Globo, produzidos pela mesma empresa de comunicação. Durante um mês cotejou notícias sobre os mesmos assuntos publicadas nos dois jornais, procurando entender como a mesma empresa utiliza diferentes linguagens para atingir destinatários diferentes.
Amanda, além disto, é mãe de Ana Clara, de 5 anos, que lhe exige também atenção. Entusiasmada, não sente como um fardo o desempenho de “tantos personagens” em uma pessoa só, por acreditar no que faz. Entendendo o ofício de professor quase como uma utopia, cita William Shakespeare (1564-1616): “Somos feitos da mesma matéria que nossos sonhos”.
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A VOZ DA SERRA – Você nasceu em uma família que faz parte da população tradicional de Lumiar e seguiu caminhos que a levaram a outros lugares. Como foi essa trajetória?
Amanda Heiderich – Venho de uma família de professores. Fui criada em casa de meu avô [Alcides Heiderich] e meu tio [Edimar Heiderich], ambos professores, e eles achavam, principalmente meu tio, que eu tinha todo um jeito, que meu futuro seria ser professora. E aí, fiz os vestibulares para Comunicação, Direito e Letras. E a tendência da família era que eu seguisse o magistério.
AVS – E isto cresceu em você em cima de sua vivência em Lumiar.
Amanda – O que realmente Lumiar me traz — e talvez isto tenha mesmo influenciado minha escolha — são lembranças das professoras de português de lá e as histórias de Lumiar, as lendas. Na minha época de escola, lembro-me que buscava saber sobre o Mão de Luva, sobre a história da colonização. Por uma questão de necessidade, a gente acaba se afastando. Tentei levar minha matrícula do estado para Lumiar, mas isto traria outros problemas.
AVS – Ou seja, nessa sua trajetória de afastamento de Lumiar não existe uma ruptura.
Amanda – Pelo contrário, tentei levar minha matrícula no estado para lá, mas, como a gente tem que trabalhar em três lugares, o horário não permite. Mas em minhas aulas sempre faço menção a Lumiar, a sua cultura, a seus pontos turísticos, aos cenários de novelas. Mas, infelizmente, pela questão da distância do centro de Friburgo, do trabalho, a gente acaba se afastando um pouco. Há uma coisa que me chama a atenção: não me lembro, dentre meus colegas de turma em escola, aqueles que seguiram alguma carreira acadêmica, ou mesmo que tenham concluído a faculdade, são muito poucos. Talvez tenha sido uma questão da formação familiar, talvez eu tenha buscado no estudo uma realização pessoal e uma perspectiva de vida melhor, até para minha filha.
Uma coisa que me marcou de meu avô foi a questão da leitura, ele lia sempre a Bíblia e eu ficava imaginando que ele já tinha lido a Bíblia várias vezes, porque todos os dias ele lia. Desde pequena eu via meu avô lendo a Bíblia E havia também os textos dos livros didáticos, eu via meu tio preparando provas, ainda em mimeógrafo, e me encantavam os textos e as figuras que ele colocava, aquilo me interessava, aguçava meu imaginário.
AVS – Embora você tenha nascido e crescido em um lugar com ligação tradicional à vida agrícola, tinha havido um acontecimento na história da família, duas gerações antes de você, que abria outros caminhos, o fato de seu avô já ter se tornado professor e, depois, seu tio. E como você entende essa juventude atual de Lumiar, o que seria importante para ela?
Amanda – Acho que o que aconteceu com minha família foi em função da necessidade de mudar de campo de trabalho, porque a agricultura já não dava mais, e meu avô foi para o magistério. Quando meu tio começou a trabalhar, a agricultura praticamente já não existia. Comigo, então, nem se fala. E o que falta hoje a esses jovens de Lumiar é eles poderem enxergar um pouquinho além do horizonte.
AVS – E o que pode ajudar? A escola?
Amanda – Eu acho que a escola é o caminho primeiro de todos. É preciso ousar, sonhar e eu acho que esses jovens são imediatistas e a escola tem papel cada vez menos importante na vida deles. E nossa cultura está ficando cada vez mais efêmera e é necessário construir raízes, edificar uma vida e não sei se esses jovens pensam muito nisso.
AVS – Então, o fato desses jovens serem imediatistas e o caráter efêmero dos acontecimentos culturais se combinam e significam uma mudança?
Amanda – Acho que estamos vivendo uma revolução cultural. Hoje é muito mais fácil chegar à informação, mas, o que fazer com ela? É o que me pergunto. E esse modelo de se ficar quatro ou cinco horas por dia em uma cadeira dura está ultrapassado. Na minha época, para eu fazer um trabalho sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas [, de Machado de Assis], eu tinha que ler o livro inteiro, não tinha à minha disposição resumos, críticas, trabalhos prontos na internet. A educação, hoje, parece viver uma crise.
AVS – E essa crise não estaria também no fato de ninguém mais ler um livro inteiro, como Memórias Póstumas de Brás Cubas?
Amanda – Talvez. Pergunto-me todos os dias o que fazer para tornar minha aula mais agradável, como usar os recursos visuais, os recursos eletrônicos, que estão gritando na cabeça desses jovens. Talvez estejamos vivendo uma escassez de pensamento, de raciocínio. Nunca fui expert em matemática, mas quando me perguntavam quanto é 15 vezes 15, pensava que 10 vezes 15 é 150 e 5 vezes 15 é 75 e os dois juntos fazem 225. Hoje, a informação está muito pronta, e então não há a necessidade do pensamento, do raciocínio para se chegar a alguma coisa. Questiono a mim mesma sobre o que está acontecendo com a educação e com os jovens e acho que, a cada ano que passa está mais difícil trabalhar com os jovens. Isto exatamente porque vivemos um modelo de ensino que não está conseguindo alcançar a velocidade das mudanças da sociedade, das mudanças globais. Atualmente, no [Colégio] Nossa Senhora das Dores temos uma plataforma virtual de ensino, tentamos jogar na plataforma fórum de discussão, exercícios. Já que eles adoram ficar na internet, sugerimos que procurem determinados sites.
AVS – E isto tem dado resultado?
Amanda – Eles procuram, o que já é alguma coisa. Estamos passando por um processo em que talvez seja necessário amadurecer como conciliar a educação com a tecnologia.
AVS – E os textos com a possibilidade de tantos links? Embora seja uma coisa que facilite a busca de informações, isto contribui para o desenvolvimento de uma tendência à dispersão, não é?
Amanda – Eles são a geração multitarefa, conseguem estar no MSN, ouvir música e fazer o dever ao mesmo tempo. Vivemos, ainda, um ensino gramatical pautado pela tradição e superar essas barreiras, ultrapassar o limite da gramática e aliar o gramatical ao situacional é um desafio. O aluno tem que saber gramática, sim, mas ela é um meio que leva à expressão do pensamento, ela é a ponte. Perdeu-se muito quando se compartimentou a literatura, a gramática e a redação. E enfrentar o desafio de aliar o gramatical ao situacional nem sempre é bem-visto por todos, por todos os pais, que estudaram a língua portuguesa decorando todas as funções sintáticas do “que”.
AVS – E, então, como se continua?
Amanda – Inicialmente, há pais que ficam assustados, mas com esse trabalho criamos leitores críticos, que é o que mais precisamos formar. Parto do princípio de que não estou formando gramáticos, mas cidadãos.
Na faculdade e no mestrado vinculei o meu gosto pela magia dos textos com o ensino de gramática e acho que fica muito mais fácil para o aluno quando se parte de uma situação concreta, mesmo que imaginária, e levar o aluno a achar em uma história os elementos gramaticais. Vim de uma formação que estudava gramática descontextualizada e agora mostro para meus alunos que é impossível estudar a língua sem ter um contexto. Meu mestrado foi em análise do discurso e acredito que todo e qualquer texto é produzido com uma intenção e as palavras são manipuladas para se atingir um objetivo. Procuro trabalhar os textos com meus alunos porque, antes deles saberem todas as classes gramaticais e as funções sintáticas, eles têm que entender a mensagem que aquele texto passa. A partir do entendimento da mensagem busco mostrar a importância do estudo da gramática.
AVS – Houve há pouco uma grande polêmica em torno do livro didático de língua portuguesa editado pelo Ministério da Educação, Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender. Vários órgãos de imprensa afirmaram que o livro “ensinava a falar errado”. O que você pensa sobre essa polêmica?
Amanda – Acho que a imprensa se equivocou totalmente. É a questão do contexto. A questão da concordância verbal que foi abordada como errada estava no capítulo de variação linguística. E variação linguística é ensinado desde 1997, quando os parâmetros curriculares foram aprovados. Então, já passou por Fernando Henrique, Lula e Dilma. Foram infelizes na afirmação que fizeram. A imprensa se equivocou muito, pegando uma parte do livro e descontextualizando-a, dizendo que o MEC estava fazendo apologia do inadequado. Usam-se formas na língua oral diferentes da língua escrita, que é um outro processo, que é mais trabalhado mentalmente. Na linguagem oral, montam-se os enunciados à medida em que o texto vai fluindo. O que falta, hoje, no ensino da língua portuguesa é essa consciência do contexto.
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