procuremos a orientação das flores
Vou pela sombra dos fios.
Nunca sei onde colocar as vírgulas.
E ainda tem um ‘cado de orgulho empapuçado debaixo do pescoço de alguns desses caras, entupindo as veias, matando-os aos poucos, vivendo debaixo duma glória que não existe mais, tal e qual mendigo se protegendo da chuva num desespero de pegar o primeiro guarda-chuva que encontra pela frente e este ser só uma armação metálica quebrada, cujo tecido impermeável já apodrecera há anos. Mais ou menos igual ao amor.
Anotações sobre o rio de sangue e as três cidades irmãs
Meus heróis foram os desajustados, os bêbados, os que perderam, os que não puderam contar suas histórias, os que não se acharam dignos de caminharem sobre esta terra suja e criminosa, que perverte tudo o que é belo, tudo o que é sagrado (se é que há algo sagrado, nesses dias cinzentos).
Quando o navio finalmente alcançar a terra
E o mastro da nossa bandeira se enterrar no chão
Eu vou poder pegar na sua mão
Falar de coisas que eu não disse ainda não
Coisas do coração!
(Raul Seixas, Kika Seixas e Cláudio Roberto)
Este era o problema do senhor Camponésio Campelo Suarcida: odiava imediatamente todos aqueles que conhecia.
Aos vinte e três foi embora de seu lar e jurou nunca voltar. Os três anos seguintes foram perdidos num estupor momentâneo da liberdade. Infelizmente, boa parte dessa liberdade dissolveu-se junto com a primeira decepção amorosa (o equivalente a uma batida da polícia no apartamento de um traficante inexperiente).
Já contava vinte e sete e quando teve a primeira conquista amorosa. Aos vinte e nove não via caminho algum. Voltou a cair na estrada.
Armou negócio em alguma vila africana. Um bar temático que seis meses mais tarde estampou manchetes de jornal de todo o globo, como o primeiro de uma série de atentados que culminariam com um golpe militar transmitido ao vivo por celulares no mundo inteiro.
A estrada fez-se novamente necessária. Os cinco anos mais felizes de sua vida perderam-se nas ondas, como lágrimas na chuva. Havia conhecido uma garota e, com ela, teve um filho. A criança afogou-se aos três anos de idade, pondo fim ao primeiro ciclo de felicidade na vida de nosso protagonista. Sua vida passou a oscilar em vibrações como que as de músicas setentistas.
Alcança os quarenta. Recebe a notícia da morte da mãe. Liga para casa e descobre que o pai também já está morto. Não há mais para onde voltar.
Os próximos dez anos são dedicados a viagens pelo globo. Amantes, tesouros, mistérios, mestres, poder. Tudo que lhe é permitido, ele passa a procurar. Algumas vezes, até se engana, pensando ter chego ao fim de tudo.
A roda gira, metade de sua vida abandona o seu corpo. A notícia de um filho bastardo, uma reação insensível de sua parte. Uma nova busca por sentido começa. Os olhos se apequenam, a visão turva. A escuridão consome.
Os setenta anos não são mais que sombras. Uma nova etapa de viagens começa. Conhece o mundo, tem a rara oportunidade de ofender as pessoas nas mais diferentes línguas.
Chegam os oitenta e o cheiro pesado do sono da morte começa a escorrer para fora de seu corpo.
Não houve visitas. Apodreceu no hospital.
Passou a vida entre mundos que não o queriam e padeceu justamente daquele que só os mundos mais povoados podem apresentar: solidão.
E morreu.
Deixe o seu comentário