Ana Blue
A Quarta-feira de Cinzas, dia de ressaca moral para muitos brasileiros, marca o início de um período de recolhimento e preparação para os cristãos: a Quaresma. Para quem segue os ensinamentos de Jesus Cristo, esses quarenta dias entre Cinzas e o Domingo de Ramos — quando Jesus chega triunfante em Jerusalém, para depois morrer crucificado — representam um momento de reflexão e penitência, para a reafirmação da fé. A morte de Jesus Cristo e sua ressurreição — respectivamente, Sexta-feira da Paixão e Domingo de Páscoa, se falarmos em datas — são para os cristãos justamente o ápice de sua profissão de fé. Ele morreu para que tenhamos vida, essa é a crença. E em respeito, em sinal de reconhecimento por este ato de amor, os cristãos entram nesses dias de penitência, como um autoflagelo em memória daquele que sofreu tantas dores físicas, foi espancado, humilhado e, enfim, crucificado e morto para que hoje eu possa estar aqui, escrevendo neste jornal que vocês estão lendo.
Religião à parte, infelizmente, nós todos nos desvirtuamos. Venho de uma família católica e, durante muitos anos, segui à risca as tradições. Um dia, em plena Sexta-Feira Santa, apareceu como num passe de mágica um bife no meu prato. Mesmo tendo o olho maior que a barriga, rejeitei o dito-cujo: era a lei, mesmo que eu ainda não soubesse quando, como e por que ela havia sido imposta na casa dos Silva. Minha avó soltou a pérola: "Deixa de ser boba. Jejum é pra quem tem o que deixar de comer. Pobre já faz jejum o ano inteiro”. Hoje, penso que não comer carne, que é um dos preceitos básicos do jejum da Quaresma, não passa de um ritual vazio, se no fundo você não sabe o porquê de estar fazendo isso. Quer comer carne, fazer churrasco? Que seja. Mas por que não dividir esse prato com alguém que não tem nada pra comer? Esse é o verdadeiro espírito da Quaresma. Deixar de comer um bife não parece uma penitência autêntica ou reflexão da Paixão de Cristo. Dividir o prato com o próximo, ser mais humilde, mais atento ao sofrimento do outro, mais humano, isso que é comunhão. O preço do quilo do bacalhau é quase o dobro da alcatra. Onde está o jejum nisso tudo?
Não existe reflexão num lar onde o preço do ovo de Páscoa é o único assunto tratado na mesa dos jantares de abril, com ou sem carne. "Jesus é um cara legal porque quando ele nasce a gente ganha presente e quando ele morre a gente ganha chocolate” — é essa a visão que muitas crianças têm hoje e que levam a vida inteira. Cristãos ou não — ateus não seguem tradições cristãs, mas uma vez inseridos no meio, também participam desses feriados — deveríamos todos primar pelo sentido espiritual das coisas, independente de crenças neste ou naquele santo/deus/personagem.
Se o momento é de reflexão para os cristãos, sugere que há milhões de pessoas espalhadas pelo mundo dispostas a se tornarem seres humanos melhores. A abdicar de posturas egoístas, a construir com fé e esforço conjunto uma realidade diferente para todos, independente da religião que sigam — ou não sigam. Então, que essa reflexão funcione para todos nós, que dê bons frutos. E que, no fim, o Domingo de Páscoa não seja só mais um dia de comércio desenfreado, mas um dia em que a família esteja reunida em torno de sentimentos de amor e plenitude — porque são uma família, não porque são religiosos. E tanto faz se o prato do dia for um super bacalhau regado no azeite ou alcatra quentinha saindo da churrasqueira, porque antes do corpo, a alma já estará plenamente alimentada do verdadeiro sentido de comunhão, reflexão e fé.
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