A memória e os meios de preservá-la

segunda-feira, 09 de maio de 2011
por Jornal A Voz da Serra
A memória e os meios de preservá-la
A memória e os meios de preservá-la

Maurício Siaines

Nascido em Nova Friburgo, em 1950, filho de Lucas Bohrer, fundador e primeiro gerente da agência local do Banco do Brasil, e Irene Bohrer, Nelson Bohrer estudou no Colégio Nova Friburgo, da Fundação Getúlio Vargas. Mudou-se para Niterói em 1969 e, em 1970, iniciou o curso de matemática na Universidade Federal Fluminense (UFF). Terminada a graduação, foi aprovado em seleção da IBM. Trabalhou sempre envolvido com processamento de dados, na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, no Departamento Nacional de Estradas de Rodagens (DNER), no Centro de Processamento de Dados do Estado do Rio de Janeiro (Proderj). Casou-se com uma carioca em 1978 e teve dois filhos, que atualmente moram no Rio de Janeiro. De um modo geral, dividiu sua vida entre Nova Friburgo e o Rio de Janeiro. Diz-se “um friburguense de lei e carioca de direito”. Voltou a morar em Nova Friburgo em 1993, a convite do então prefeito Heródoto Bento de Mello, para trabalhar no Projeto Saúde, época em que teve o primeiro contato com o Pró-Memória, que funcionava em instalações vizinhas, de onde costumavam pedir sua ajuda para resolver problemas com computadores. A partir desse contato, contagiou-se com o gosto pela história de Nova Friburgo.

Nelson fez uma balanço de sua experiência em uma conversa com A VOZ DA SERRA em seu apartamento no bairro Vilage, na manhã da quarta-feira, 4 de maio.

A VOZ DA SERRA – Como foi essa passagem da lida com a informática para a preocupação com a preservação da memória histórica?

Nelson Bohrer – Minha aproximação com o Pró-Memória se deu através de duas pessoas, Thereza de Albuquerque e Mello e, depois, Raphael Jaccoud. O Pró-Memória já existe há quase meio século, fruto do trabalho dessas pessoas, da Iracema Moreira, mãe do atual prefeito Dermeval Barbosa Moreira Neto, e de muitas outras que passaram por ali. Tenho a impressão de que, se não fosse a presença de Thereza e de Iracema, o Pró-Memória não existiria. Havia outra figura, que é o Jayme Jaccoud, com quem sempre tive proximidade. Mas não conhecia o Raphael, o que só veio a acontecer quando trabalhei no Projeto Saúde e ele era o secretário-geral da Prefeitura. Ali começou uma preocupação, minha e do Raphael, com relação ao futuro do acervo. Isto em 1994. Ali foi o meu momento. Já tinha a ideia de preservar o Pró-Memória, só que a tecnologia da época não permitia nem que se imaginasse digitalizar um acervo daquele tamanho. Mas ali acabei produzindo o primeiro arquivo digital de fotografias de Nova Friburgo. Foi nessa época que Raphael Jaccoud começou a manifestar sua preocupação de que se formasse uma fundação para abrigar o Pró-Memória, algo fora do contexto político, que pudesse manter o acervo. A fundação tinha que ser de direito público porque o Pró-Memória é um bem público.

 

AVS – E quando aconteceram os primeiros passos no sentido da digitalização de documentos?

Nelson Bohrer – Em 2006, comecei a experimentar, junto com o Jayme Jaccoud, na casa dele, com a digitalização de jornais. Isto, na época não era feito em lugar nenhum que eu soubesse. Começamos a trabalhar: experimenta daqui ... “não está dando para ler” ... “o jornal está encadernado, o que faz aquela curvatura” ... . Ainda assim, lancei um portal em que essa experiência pudesse ser colocada.

 

AVS – E qual software vocês usam, o Photoshop?

Nelson Bohrer – O Photoshop é utilizado para fazer a recuperação do material. Às vezes pega-se um jornal muito ruim. Fiz uma prancha em que coloquei o antes e o depois de uma edição de 1906 do jornal A Paz. De um lado a página desfigurada, onde a tinta se perdia, e na outra, o resultado da recuperação com o Photoshop. Depois, desenvolvemos uma tecnologia para fazer a leitura da página do jornal, permitindo localizar, na foto da página, aquele conteúdo desejado. Isto não está sendo feito em lugar nenhum, essa é a novidade.

Mas, antes de ter esse mecanismo de busca, imaginei esse site que dediquei a três pessoas, a meu pai, a Raphael Jaccoud e a Thereza [de Albuquerque e Mello]. Pedi para que algumas pessoas escrevessem sobre aquelas a quem tinha dedicado o projeto. Quem escreveu sobre a Thereza foi o próprio Raphael, que terminou seu texto dizendo: “para o bem da memória de Nova Friburgo eu gostaria de ser egoísta o suficiente para pedir a Deus que Thereza fosse eterna”. Esta frase, para mim, traduz tudo o que me motivou. Foi a lição maior que Raphael me deixou, foi uma pena ele não ter visto a Fundação Dom João VI ser criada. Depois pedi ao [Augusto] Muros que fizesse o mesmo com relação ao meu pai, que ele conhecera no Banco do Brasil.

Esse trabalho não é uma coisa que eu faça aqui na mesa do meu escritório, não é fruto de uma pessoa só. Tive que conjugar uma série de coisas, é um processo muito demorado. Por exemplo: onde hospedar isto? Quem paga isto? Fui buscar a parceria da Gigalink. As fotografias de páginas de jornal têm 160 megabytes cada uma, onde guardar isto? É preciso que alguém seja o guardião desses dados digitais. É preciso que o conteúdo de todos os suportes esteja protegido e, se isto está à disposição, pode ser guardado com mais cuidado e menos custo.

 

AVS – Explique a sua visão dessa relação entre o suporte original da informação, o documento, e o conteúdo. É claro que existe uma vontade, ou uma necessidade, de se ver a Bíblia de Gutemberg, por exemplo.

Nelson Bohrer – O Livro de Horas, por exemplo, está lá na Biblioteca Nacional. Mas aquilo é uma obra. Você não vai pesquisar na Bíblia do Gutemberg, nem no Livro de Horas, assim como em um pergaminho. O importante é que, há anos atrás, era impossível extrair o conteúdo de documentos antigos. Hoje é possível, além de disponibilizar a informação para o mundo inteiro. Essa questão do suporte é uma questão de evolução, como houve do disco de vinil para o CD e, agora, o livro digital. Pergunte a um autor se ele acha ruim o livro em meio digital. Garanto que a maioria não acha. Agora, isto desmonta toda uma regra de mercado que existe. Continuo afirmando que é inexorável o fim do papel. O que me preocupa é guardar o conteúdo, o conhecimento que está nesse suporte para que as pessoas não precisem mais manipular o papel. É evidente que se vai chegar a um momento em que a informação poderá não estar clara no documento digitalizado e aí vem a pergunta: será que está clara lá no original? Em um caso assim vai-se abrir o original e ver. O que não pode é ficar aquela rotina que havia antes de todo mundo manipular documentos a toda hora. Muitas vezes são historiadores, mas outras vezes são crianças, estudantes ...

 

AVS – ... e existe a possibilidade de acidentes ...

Nelson Bohrer – ... pois é, existem os acidentes e o Pró-Memória não pode estar sujeito a acidentes. Além de tudo, o local não é próprio. Foram me perguntar por que não entrou água no Pró-Memória [com a tragédia de janeiro], se a praça ficou inundada e o Pró-Memória está no térreo. Sinceramente, não sei explicar como. Da mesma forma que Moisés abriu as águas do Mar Vermelho, desceram Augusto Muros, meu pai, Raphael Jaccoud, que não deixaram a água entrar. Uma semana depois, comecei a transferir o arquivo, o que não é rápido. Quando decidi tirar o acervo dali para outro local, passei uma semana sem dormir. Se sumir um documento, cai o mundo em cima da minha cabeça. Como é que se muda um acervo desses de lugar? Paulo Knauss, do Arquivo Público do estado me orientou a usar alguma outra sala próxima ao local onde estava o Pró-Memória e que fizesse uma espécie de salto duplo, transferisse os documentos temporariamente para essa sala, para, depois, dar o salto para o lugar onde vão ficar os documentos.

 

AVS – O primeiro salto seria para guardar os documentos?

Nelson Bohrer – Não, para organizar o acervo. Cada pacote de documentos tem um número, cada estante tem um número, cada prateleira tem um número. E isto tudo está registrado no computador. Se alguém quiser determinado manuscrito original assinado por determinada personalidade histórica, ele estará registrado e classificado por pacote, estante e prateleira, que serão os mesmos depois que conseguirmos o local definitivo. O problema da mudança vai ser o de desmontar esse acervo e remontá-lo exatamente na mesma posição. Precisava também saber quantos metros quadrados seriam necessários para montar o arquivo da forma correta. Por exemplo, o espaço entre as estantes é importante, porque às vezes é preciso passar com máquinas, como as desumidificadoras, entre as estantes. Às vezes, é preciso tirar uma pasta grande e é necessário espaço. Enfim, pode-se correr o risco até de derrubar a estante. Lá dentro do Pró-Memória, o espaço entre as estantes era de 55 cm. O Paulo Knauss me disse, então que o ideal é que o espaço entre as estantes seja de 1,10 m e as prateleiras das estantes tivessem 40 cm. Temos estantes com 30 cm, que não são as adequadas. Corrigimos todas as coisas desse tipo. Nessa sala, montamos as estantes corretamente e distribuímos os documentos em função do peso. No final, estava com todas as estantes ocupadas e um monte de material do lado de fora. Mas foi possível calcular o espaço e o número de estantes necessários.

Fiz então um pequeno projeto de reinstalação do Pró-Memória e ali coloquei todas as coisas necessárias, entre elas, 50 estantes com folha de 40 cm, para 115 kg de peso, mais 20 estantes com folha de 60 cm, também para 115 kg de peso. Para mudar, é preciso ter as estantes já montadas no novo local, com a numeração determinada, para que os documentos simplesmente saiam de uma prateleira para outra equivalente, com a mesma numeração. Esta não pode ser uma mudança rápida. Enfim, hoje o Pró-Memória está pronto para mudar. As salas ocupadas anteriormente a Energisa até já mandou pintar, com outros destinos.

 

AVS – E já existe esse novo local?

Nelson Bohrer – De início, não queria que a Fundação Dom João VI em andares da prefeitura porque ficaria, assim, incluído no seu domínio. Amanhã poderia ser que uma nova administração resolvesse usar aquele espaço. E esse arquivo não pode ficar mudando de um lugar para outro a toda hora. A prefeitura, então, está vendo se seria possível o prédio dos bancários, onde, há muito tempo, funcionou o INSS, depois o Departamento de Proteção à Criança a ao Adolescente (DPCA), o Conselho Tutelar, ali em frente ao Senai. Lá ainda existe o risco de entrar água, mas ainda não entrei no prédio para fazer uma avaliação final. Existe a possibilidade de se levantar o piso do local onde ficará o acervo. A água que costuma chegar ali [em enchentes] não é tanta, porque a [Avenida] Alberto Braune é um pouco mais alta. Mas chega água ali. Ainda não conheço o local e as possibilidades de se reduzir esse risco [da exposição às enchentes].

 

AVS – Ali, naquele prédio, seria uma boa solução?

Nelson Bohrer – Seria uma solução razoável e, dependendo da solução técnica que se possa ter, seria definitiva.

 

AVS – E em quanto tempo você acha que será possível digitalizar todo o acervo?

Nelson Bohrer – Antes, eu dizia que levaria 20 anos e que talvez morresse antes de o trabalho ser concluído. Mas, hoje, com a experiência desses dois anos, tenho a sensibilidade necessária para dizer que, no ano de 2018, quando Friburgo estiver fazendo 200 anos, o trabalho de digitalização estará concluído e entregarei esse acervo digitalizado ao Colégio Anchieta, à Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia, ao Colégio Nossa Senhora das Dores, ao Sanatório Naval, ao Rotary de Nova Friburgo, ao Lions Clube, ao jornal A VOZ DA SERRA. Essas instituições compartilhariam, assim, o compromisso de guardar esse acervo.

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