A lei e a ordem

sábado, 05 de setembro de 2009
por Jornal A Voz da Serra

Maurício Siaines (*)

Este binômio ficou meio desmoralizado por ter sido repetido em demasia pelos moralistas extremados, usado sempre em uma perspectiva em que o bem e o mal estavam muito claramente definidos e o bem triunfava ao final de todas as histórias. Lei e ordem, nas diversas histórias contadas – pelos folhetins, pelo cinema, pelas novelas – tornaram-se quase sinônimos. Mas não são.

É interessante refletir sobre a relação entre essas duas coisas, a ordem e a lei. A ordem sempre existe. Para a sociologia, não existe agrupamento humano em que não haja ordem. Por mais estranha que ela seja, por mais que pareça não fazer sentido, existe sempre uma ordem. Há ordem entre criminosos, entre grupos marginalizados e mesmo entre loucos. Descobrir que ordem é essa é trabalho para os estudiosos da sociedade, para os jornalistas e para quem deseja atuar sobre a vida social. No fim das contas, é trabalho para todos, pois todos atuamos, de uma forma ou de outra, sobre a vida social.

A história bíblica de Moisés é muito interessante para se pensar essa relação entre ordem e lei. Os judeus viviam, havia séculos, escravizados pelos egípcios, isto é, viviam submetidos a uma ordem de outro povo, exterior a eles. Quando conseguiram a liberdade, algumas coisas se alteraram. Primeiro tinham que acreditar que haveria uma solução quando se viram acuados entre o mar Vermelho e seus perseguidores. E a solução vem com o abrir-se do mar. Em seguida, quando a fome se abate sobre eles, precisam acreditar que vai cair pão do céu, o que acaba acontecendo.

Essa noção de que a crença é fundamental para as coisas darem certo se repete em diferentes circunstâncias. Houve um locutor de futebol, Waldir Amaral, que apelava muito para essa necessidade de crer, que é o que marca o torcedor. Quando uma bola era lançada para um atacante, Waldir fazia o apelo a ele: “acredita nela, Fulano!”. Conseguia, assim, a identificação com o sentimento do torcedor. E, de fato, se não acreditarmos, as coisas não acontecem. Não basta acreditar, mas se não se acreditar no que se está fazendo, nada dá certo, não se começa a fazer o necessário para se chegar ao objetivo.

Os judeus que seguiam Moisés experimentaram a fé, mas a liberdade que eles passaram a vivenciar exigia outra condição: a lei. E foi ela que Moisés buscou na montanha.

O que essa história nos diz é que a liberdade e a lei se complementam. A condição de liberdade exige a presença da lei a fundar uma nova ordem e não aquela tradicional do tempo da escravidão. É claro que isto é uma interpretação, mas é preciso admitir que ela é verossímil.

Oliveira Vianna, estudioso da sociedade brasileira, diz que: “O passado vive em nós, latente, obscuro nas células do nosso subconsciente. Ele é que nos dirige ainda hoje com a sua influência invisível, mas inelutável e fatal” (Oliveira Vianna, 1952. Populações Meridionais do Brasil, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, p.11). Se isto é verdade, devemos procurar em nossa história as raízes daquilo que hoje nos atrapalha. Oliveira Vianna nos fala ainda de um fenômeno que ele chama de “anarquia branca” (idem, p.203), que é a ordem imposta sem lei pelas elites dominantes do mundo rural brasileiro, fenômeno que nos remete a relações sociais muito antigas, talvez relacionadas com a história portuguesa anterior ao descobrimento do Brasil.

A proteção recíproca entre os indivíduos que compõem a ordem, fenômeno ocorrido entre os nobres portugueses nos séculos 14 e 15, provavelmente, é a origem das relações de compadrio, intimamente ligadas ao que mais tarde viemos a chamar de coronelismo, ordem que tem dominado nossa vida social e se expressado nas mazelas e diversas formas de baixaria praticadas pelos políticos. Novas ideias, projetos de transformação, arte, ciência, tecnologia, tudo isto parece ser absorvido, devorado pela ordem coronelista que, tal como o monstro do mito grego, vive a repetir aos agentes de todas as propostas inovadoras: decifra-me ou te devoro.

Mas sempre existe uma alternativa fundamental: instituir a ordem com base na lei, não aquela da tradição e do compadrio, mas a lei mesmo, igual para todos, que não reconheça privilégio de qualquer natureza. Essa é a condição da liberdade e da democracia.

(*) Jornalista - mauriciosiaines@gmail.com

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