A lei e a misecórdia

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
por Jornal A Voz da Serra

João Baptista Herkenhoff

 Diante de temas como aborto, divórcio, suicídio, eutanásia, suponho que haja duas situações muito diferentes.

A primeira situação é o julgamento ético do aborto, do divórcio, do suicídio, da eutanásia e de outros temas relacionados com o procedimento humano.

Eu me posto reverente diante da sacralidade da vida.

Quando vou a casamentos sempre formulo votos para que só a morte separe aqueles que se unem.

Só Deus pode marcar o momento em que alguém deve partir.

A vida tem um valor infinito, mesmo quando marcada pelo sofrimento.

A segunda situação é o julgamento das pessoas envolvidas nos casos concretos.

O julgamento ético é peremptório e deve ser peremptório porque a ética pretende estabelecer rumos ideais para a caminhada humana, não apenas para o procedimento individual, como também para o procedimento coletivo.

Quando se trata do julgamento das pessoas envolvidas nos casos concretos o foco altera-se totalmente.

Nesta matéria, mesmo para as pessoas que não tenham fé, suponho que a mais bela lição foi dada por Jesus Cristo diante de Madalena.

Jesus Cristo não aprovou, nem subscreveu a conduta de Madalena, mas Jesus Cristo compreendeu Madalena.

Quando se pretende o julgamento frio dos atos e dos fatos, sob a luz teórica de princípios, sem atinência às circunstâncias às vezes dramáticas que envolvem os casos, homenageia-se a lei, coloca-se a lei como referencial básico (dura lex sed lex), quando, na verdade, o referencial básico é o humanismo, a compaixão, a misericórdia.

Todos estamos às voltas com questões éticas no curso de nossa existência. No caso das pessoas que integram o mundo do Direito, a indagação ética faz parte do cotidiano.

O cotidiano coloca o jurista, principalmente o juiz, diante de situações concretas. A resposta aos desafios do dia a dia não está na abstração dos princípios, mas na capacidade de humanizar a norma legal.

À face de um mundo pluralista, como o mundo moderno, é viável defender uma concepção ética do Direito?

Creio que sim. A partir do próprio pluralismo. Sem dogmatismo. Antropologicamente.

A luta para a salvaguarda da essência do Direito é um dever ético do jurista. O instrumental teórico para esse posicionamento pode ser encontrado em diferentes fontes: seja no direito supralegal a que se refere Radbruch, seja numa referência crítica para a legislação vigente, como propõe Hermes Lima, seja na tentativa de humanização da Justiça, a que se reporta Flóscolo da Nóbrega, seja no catálogo dos Direitos Humanos proclamados em foros internacionais, ou trazidos à prática efetiva, através de convenções e tribunais supranacionais.

Além de tudo isso deveremos lutar por valores que se afirmem mais na praxis do que nas definições teóricas.

A este propósito é impressionante a sabedoria popular.

Numa comunidade eclesial de base, na periferia de Vitória, o povo que precisava de terra para construir suas modestas habitações, cantava nas celebrações religiosas:

“Queremos terra na Terra,

já temos terra no Céu.”“.

Essa “terra na Terra” é “direito” das pessoas, “direito” das famílias, “direito” dos operários, ainda que a legislação e a organização social do país neguem esse direito aos que dele necessitam.

 

João Baptista Herkenhoff, 73 anos,

é magistrado aposentado, professor pesquisador da Faculdade

Estácio de Sá de Vila Velha (ES)

e escritor. E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
TAGS:
Publicidade