Angela Moreira Utchitel Psicanalista, Doutora em Psicologia Clínica. Professora do Curso de Psicologia e Coordenadora do Curso de Especialização em Clínica Psicanalítica da Universidade Estácio de Sá. utchitel@uol.com.br
Manhã de 07 de abril de 2011, bairro de Realengo no Rio de Janeiro. Local: uma escola municipal. Cenário: terror, para quem estava ali dentro e para aqueles que, de fora, ouviam disparos e gritos. Desfecho: muitas crianças e adolescentes mortos, e famílias chocadas e enlutadas. Autor da chacina: um jovem de 24 anos, ex-aluno da referida escola. Foi com este triste acontecimento que o Rio de Janeiro amanheceu nesta última quinta-feira.
Em meio à intensa dor provocada pelos fatos, uma pergunta permeou toda cobertura da mídia dada ao crime: Por que alguém comete tal atrocidade? Esta questão foi enunciada de múltiplas formas por aqueles que estavam lá e pelos próprios jornalistas, assumindo os seguintes tons: Quem é capaz de atingir, de forma tão brutal, tantas crianças?; ou então: O que levou este jovem, um ex-aluno, a se armar de modo tão premeditado e executar tantas crianças? Ainda nesta linha de indagações sobre o porquê ou por quais razões alguém faz o que ele fez, foi possível ouvir: Quem é este jovem? Como vivia? Foi vítima de bullying? Foi treinado no uso de armamentos?
Pois é, somos assim: precisamos encontrar razões para os fatos, buscar sentido para os eventos da vida, uma vez que é, de fato, muito difícil lidar com aquilo que escapa ao sentido e foge de qualquer possibilidade de significação. É o chamado Real, na linguagem psicanalítica. O Real é uma das dimensões da nossa experiência — tanto quanto o Simbólico e o Imaginário. Entretanto, ao mesmo tempo em que é a dimensão que nos confere nosso aspecto mais singular, é também a mais difícil para acolhermos como legítima em nosso campo da consciência. Resistimos ao Real que não cessa, contudo, de nos acossar — embora não consiga, frequentemente, encontrar seu lugar no campo da linguagem, ou seja, das significações. O Real comumente escapa ao sentido e resta como um buraco no Simbólico. É com este resto que, genericamente, nos embaraçamos. Não é fácil mesmo lidar com ele...
É justamente esta nossa dificuldade em lidar com o Real que faz com que busquemos, sempre, não só evitar o que é dramático ou trágico, mas buscar explicações plausíveis, e portanto controláveis, para circunscrevê-lo quando ocorre; daí nos culparmos ou sairmos em busca de culpados. É também isto que faz com que a Ciência, a pesquisa e a tecnologia avancem, no sentido de tentar prevenir acontecimentos ou adoecimentos que nos aproximem, ameaçadoramente, da morte. De certo modo, a Ciência tenta — e, de certo modo, consegue — adiar a irrupção do Real ao qual a morte se vincula por sua falta de representação (afinal, pergunto: Sabemos responder ao que é a morte estando vivos?).
A questão central, entretanto, é que não há como escapar do Real; ele insiste... Wellington, o assassino de tantas crianças e adolescentes em Realengo, foi tão vítima do Real presente nele mesmo quanto as crianças que perderam a vida, e nós mesmos, atingidos pela brutalidade e falta de sentido do seu ato.
A loucura — termo ruim, que podemos substituir por Psicose — e, mais precisamente, o surto psicótico é o resultado de uma irrupção do Real. Foge ao sentido comum e, se faz algum sentido, é apenas para aquele que cometeu o ato, resultado, geralmente, de um longo delírio, alimentado por fantasias ameaçadoras e de perseguição. Delírio alimentado, também, pela impossibilidade psíquica de ver o mundo, e lidar com ele, como a maioria de nós. O mundo psicótico é um mundo sem organização e, se existe alguma, esta é absolutamente singular. Esta característica faz com que as pessoas estruturadas psiquicamente de modo psicótico olhem para o que está em volta e interpretem os fatos e os acontecimentos de modo particular e inquestionável. Não há, para o psicótico, a dimensão da dúvida; a verdade do mundo é a verdade dele. Foi por isso que pudemos ouvir, sobre Wellington, declarações do tipo: era tímido e vivia num mundo próprio...
A chacina de Realengo já está produzindo em vários setores da sociedade e em várias secretarias, especialmente a de Educação e a de Segurança Pública, a necessidade de se pensar em medidas capazes de antever tal comportamento e prevenir tragédias como esta. Embora pessoalmente considere sensata e razoável tal preocupação, não creio que qualquer medida possa efetivamente prevenir ou impedir que fatos como este voltem a ocorrer. Psicóticos fora de surto, ou antes da crise, estão entre nós. Identificá-los não é simples e, se moram sozinhos como Wellington, isto fica ainda mais difícil. O fato é que o Real irrompe onde menos esperamos e nos atinge, com toda sua insensatez.
Mais assustador do que isto é, de certo modo, saber que a atitude de Wellington poderá ser imitada por outros wellingtons, não só no Rio, mas no Brasil e mesmo no mundo. Columbine deu a partida em relação a chacinas realizadas em escolas. O próprio Wellington parece, segundo informações veiculadas pela mídia, ter pesquisado muito estes crimes na Internet, durante a construção de seu delírio. A Epidemia Mental ou Contágio Mental existe e, se a comunicação global tenta encobrir o Real da distância em sua realidade geográfica e temporal, fazendo-nos crer que, de fato, estamos ali, próximos de tudo e participando in loco dos acontecimentos mundiais, não impede que este mesmo Real irrompa, naquilo que chamamos de “identificação com a emoção de um outro”. Deste modo, em qualquer lugar do mundo, um outro psicótico pode, perfeitamente, “ver-se” em Wellington, querendo ser como ele e virar notícia como ele... Este é o lado mais dramático do narcisismo — indispensável para todos nós —, presente de modo deslocado e exacerbado nesta patologia.
As chamadas fatalidades existem... São a expressão do Real. Lidar com elas requer trabalho psíquico, um trabalho que inclui, de um lado, a tentativa tipicamente humana de dar sentido (ainda que não todo) ao não sentido do Real e, de outro, a possibilidade de acolher, em vida, o aspecto inevitável e incontornável da morte, sem se deixar sucumbir.
Rio de Janeiro, 08 de abril de 2011.
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