A identidade, o poder e a tradição

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010
por Jornal A Voz da Serra

Maurício Siaines (*)

É difícil, às vezes, distinguir a busca de um posicionamento ético de um moralismo barato. Quando, em 2005, estourou o escândalo do mensalão era curiosa a indignação manifestada por muita gente afeita às jogadas políticas, nem sempre legais, e ao coronelismo tradicional brasileiro de raízes tão antigas. Havia quem pontificasse: “Lula não fica um mês no governo”. Quem o derrubaria nunca ficou muito claro. Um processo de impeachment, tal como aconteceu com Collor? Um golpe à moda de 1964? Talvez esta última hipótese estivesse mais de acordo com o espírito daqueles que manifestavam tal desejo de ver Lula apeado do poder naquela oportunidade.

Ao contrário de toda aquela euforia, com a revelação de que um partido comprometido com a ideia de justiça social e de ética na política tivesse montado um esquema de corrupção nos moldes da melhor tradição nacional, a popularidade do presidente da República continuou a crescer, sendo ele reeleito no ano seguinte e, a menos de um ano do fim do mandato, mantenha-se em níveis ‘nunca atingidos antes na história deste país’. Agora chega o filme de Fábio Barreto, baseado no livro de Denise Paraná, Lula, o filho do Brasil, lançado neste início de janeiro de 2010 em toda a América do Sul simultaneamente. Não será o filme que promoverá a popularidade de Lula, no máximo ele a sedimentará.

Em tudo isso há a manifestação de pelo menos dois fenômenos surpreendentes, que têm uma certa independência entre si: a popularidade de Lula e a redução de um projeto político inicialmente inovador aos moldes tradicionais do coronelismo e da compra de apoio parlamentar. No primeiro deles, se Lula é o filho do Brasil e tem realmente sua cara, é a primeira vez que um herói popular ocupa esse lugar. Outros se aproximaram da figura protetora, embora saída da elite, do coronel que protege, do pai dos pobres, como foi Getúlio Vargas. Ou do empreendedor, também ligado às elites de sempre, como Juscelino Kubitscheck, ou mesmo Fernando Collor, mais aproximado do estilo Indiana Jones, embora também surgido das classes dominantes. Com Lula, a figura do herói ganha a cara do próprio povo. E isto é original. Talvez seja precipitado dizer que Lula significa que o brasileiro passou a acreditar em si próprio, mas talvez haja um pouco de verdade nesta hipótese. Em todo caso, a identidade popular do presidente é inegável.

Outra coisa é o esquema de poder baseado na compra de apoio parlamentar. Este tem feito parte da tradição, e teria sido usado para atingir ‘objetivos revolucionários’, segundo uma antiquada esquerda afeita ao princípio maquiavélico de que os fins justificam os meios e de que é preciso modificar a infraestrutura sem muita preocupação com que faria parte superestrutura, como a legalidade e a ética. Compra-se apoio com 30 mil reais por mês ou com cargos e sinecuras, ou, ainda, com estações de rádio e televisão. Afinal, se existe todo um segmento social em torno do poder sempre pronto a se vender, basta comprá-lo. O problema, neste caso, está na relação entre o fazer e o construir-se. O que faço age sobre mim próprio, se crio um sistema de corrupção, mesmo com objetivos de mudanças sociais, reforço o princípio da corruptibibilidade, talvez mais do que o da justiça social, e acabo me adaptando ‘ao que sempre foi’. E, assim, nada muda, reforçando a máxima cética do personagem de Tomaso di Lampedusa, segundo o qual, “é preciso que tudo mude para que tudo permaneça como sempre foi”.

(*) Jornalista, mestre em sociologia

mauriciosiaines@gmail.com

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