A generosidade é azul

quinta-feira, 10 de março de 2011
por Jornal A Voz da Serra

Depois de dias suportando o clima de guerra, desci a serra, onde só lama, destruição, sirenes de carros com corpos desfalecidos, retirados de centenas de soterramentos, via-se desde o dia 12 de janeiro de 2011.

Das serras jorravam lágrimas, no céu, a lua, crescendo em sua luz prata, parecia pedir desculpas pelos estragos causados pela inocente natureza, as estrelas que via-se no céu depois daquela torrente de água, pedras e lamaçal infindável, provocados por uma tempestade magnética sem precedentes, mais pareciam lágrimas da mesma natureza, que chorava assustada, como uma criança que acaba de fazer uma grande travessura.

Ingênua , a natureza tentava alentar-nos . Chorava baixinho, por uma chuva fraquinha ou, então, ofuscava nossos olhos lacrimosos com raios faiscantes e tímidos de sol.

A cidade era só destroços. Ruas que agora eram rios, rios, ora sulcados, ora transformados em torrentes, corredeiras e até cachoeiras, com os seus leitos apedrejados por enormes pedras, pedras que desprenderam-se de montanhas, que agora, mostravam-se cheias de crateras, rasgos, desnudada de árvores que desciam, com raízes profundas e caules com 10 metros ou mais.

O Cenário era de uma bomba atômica a destroçar casas, de tão em pedaços que estavam. Pedaços de paredes coloridas, mais parecendo cacos de uma casa de brinquedos, casas que, de fora, via-se a privacidade invadida sem qualquer cerimônia, e, ainda, outras tantas saqueadas. Casas que desciam umas sobre as outras, pela força da terra, que com a água, os raios, fizeram-se descer das montanhas.

Pessoas vivas em abrigos, roupas e alimentos que chegavam de todos os lados, pessoas que chegavam para ajudar, também de todos os lados e pessoas mortas que se amontoavam em mortuários improvisados em creches, colégios, escolas de samba ou em qualquer outro lugar.

Via-se de todos os lados, uma única cor, a cor marrom. Uma cor surpreendemente assustadora, devastadora, cobria o sangue da vítimas, a dor de todos, daqueles que ficavam, daqueles que sofriam, daqueles que se perdiam na lama, nos torrenciais das águas.

Estradas que desabavam, pontes que eram levadas pelas águas e casas que eram lambidas pelas margens dos rios. Pessoas que eram salvas, pelos helicópteros, por outros comuns, pelos homens civis comuns, pela defesa civil, pelo corpo de bombeiros, pelo vizinho, por alguém que estava, por enquanto, a salvo.

Homens que morriam enquanto socorriam vítimas. Pai e filho que conseguiam sair com vida, enquanto o pai o alimentava com a sua saliva e o filho o alimentava com o desejo de viver.

Sentia-se, em meio à catástofre, cheiro de generosidade. Três dias depois da tragédia, quando descia a serra, vi um cenário também de guerra, mas de guerreiros do bem. Eram ônibus, muitos, com muitos, muitos garis, com uniforme laranja. Caminhões, inúmeros, da Comlurb, o Exército, a Marinha, a Aeronáutica, o vice-governador, e muitos outros carros de cidadãos carioca, que subiam em direção à serra para nos prestar a sua generosidade.

Lágrimas incontidas, emoção lúgubre de alguém que ainda não se permitia tomar consciência de toda aquela tragédia.

Por todos os dias, homens trabalhando incessantemente, após terem sido recebidos com aplausos. Os garis cariocas misturavam-se ao cenário marrom, a dar um colorido de esperança. A cor laranja fosforecia em meio àquele lamaçal que era diligentemente retirado.

Caminhões em outros pontos da cidade, corpo de bombeiros que tentavam resgatar corpos ou pessoas com vida. Era o que se via.

Aos poucos, pessoas circulavam em busca de pão, água, uma vela para a noite, após a tragédia. Uma noite de corações em treva.

Campanhas seguiam-se por toda a cidade carioca, alarmada com os cenários que viam pela mídia, que massacravam os seus corações, comoviam e choravam com a serra. Foram caminhões de donativos, centenas de voluntários para auxiliar os desabrigados, eram muitos, não sei quantos, acho que mais de 10.000.

A generosidade carioca era de emocionar, de chorar um choro diferente daquele que chorávamos em meio à tragédia. Um choro de sentimento contido, de agradecimento, de ânsia por não apertar a mão de cada um que, delicadamente, enviava ajuda ou pessoalmente ajudava.

Eram pessoas que saiam do conforto de suas casas, que esqueciam-se de seus dramas próprios da cidade grande e compareciam aos postos de coletas. Eram avisos por todos lados, postos de arrecadações, inúmeros.

Filhos nossos (de friburguenses) que residem no Rio, montaram uma verdadeira rede de e-mails e deflagavam inúmeras campanhas, donativos para crianças, com roupas doadas por lojas infantis, caminhões de mantimentos que chegavam de muitos outros lugares, mas principalmente do Rio.

O carioca mostrou que a generosidade é azul.

E, hoje, duas semanas passadas, ao entardecer, quando desço do 8º. andar do prédio da OAB, na rua Marechal Câmara, junto com meus clientes, olho para o cenário que desnuda-se à minha frente.

Um cenário com montanhas azuis, árvores azuis e tudo, absolutamente tudo me pareceu azul - e eu achei o Rio de Janeiro lindo, vi um Rio de Janeiro dos poetas e pensei: “A cidade está azul porque está cheio da generosidade que dispensaram às serras fluminenses, e falo por Nova Friburgo, e conclui que, sem sombra de dúvida, o povo carioca é um povo generoso, por isso, a cidade do Rio de Janeiro é azul”.

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