Maurício Siaines
No final dos anos 1980, as grandes empresas metalúrgicas e têxteis diminuíram de importância em Nova Friburgo e algumas delas chegaram a fechar as portas, passando a economia a ser movimentada em grande parte pelas confecções domésticas, com o início aí de um profundo processo de mudanças no modo de viver e no conjunto de representações de mundo que se chama normalmente de cultura.
Larry Busquet é um personagem que experimentou diretamente as alterações por que passou a cidade durante as últimas três décadas, em que um tipo de atividade econômica dominante foi substituído por outro. Hoje trabalha na Secretaria Municipal de Educação com o cargo de subsecretário pedagógico. Ele conversou com A VOZ DA SERRA, nas dependências da Secretaria, na última segunda-feira, 15. Era Dia do Comerciário, em que as lojas fechadas davam a impressão de meio-feriado, mas a entrevista foi muito dinâmica, embora em clima marcado pela serenidade. Serenidade difícil de ser construída pois, afinal, para a subsecretaria convergem 133 escolas inseridas na vida social friburguense a acumular de energia todo o sistema. Abaixo, trechos da entrevista.
A VOZ DA SERRA – Como vê a relação entre a cultura e a organização do sistema educacional?
Larry Busquet – De alguma maneira me inquieta um pouco essa divisão entre educação e cultura. Entendemos a educação como a transmissão da cultura. Faz-se aí uma separação que fragiliza o processo da interação humana. Nós estamos aqui [no ambiente em que se realiza a entrevista] cercados de cultura. Não há nada nesta sala que não tenha sido produzido pela mão humana. Há um programa chamado Todos pela educação, mas me atrevo a dizer que só vamos melhorar quando entendermos que o programa deveria ser Todos pela cultura da educação, ou seja, observarmos que temos a cultura nos rodeando e que ela precisa ser transformada em educação. Precisamos ter esse olhar educativo sobre tudo aquilo que observamos e sobre o que ainda podemos observar. E precisamos também pensar, enquanto Secretaria de Educação, na produção de cultura. Não consigo entender uma secretaria de educação que não se imagine no papel de também produzir cultura. Vejo que é culturalizando a educação que podemos ter uma visão um pouco mais enraizada no entendimento do que deve ser a educação para nossa gente.
AVS – Falando em enraizamento vem a pergunta sobre como essas ideias se enraízam em sua vida, isto é, o que o levou a pensar dessa maneira?
Larry – Comecei a trabalhar aos 8 anos de idade, embora informalmente, mas já com muita responsabilidade, carregando almoço, engraxando sapatos, vendendo balas em portas de cinemas, revistas em quadrinhos ...
AVS – Sempre aqui em Nova Friburgo?
Larry – Sempre aqui em Friburgo. Tive depois muitas outras experiências mas, a princípio, fazia muitos pequenos mandados e ganhava sempre um trocadinho. Depois, aos 14 anos, fui para o Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), onde fiz meu primeiro curso de torneiro mecânico. A partir dali, fui trabalhar em empresas de metalurgia e permaneci durante muito tempo nessa atividade. Fui torneiro mecânico e depois ferramenteiro, mas sempre com aquele desejo muito intenso de educar. Sempre gostei muito de ler e tinha dificuldade [para ter livros] por questões financeiras. A simplicidade de minha família não permitia que fizéssemos um voo mais alto. Até mesmo o desejo de ser um engenheiro mecânico compensei um pouco sendo um torneiro, buscando fazer o trabalho com muita responsabilidade e muito amor. Trabalhei em metalúrgicas desde 1965 até 1980. Em 1977, fui convidado para ser instrutor no Senai e passei a trabalhar lá e na empresa Mitroplast, ficando nessa dupla função até 1980, quando deixei a empresa e permaneci no Senai e fui cursar minha primeira faculdade, isto já depois de casado.
AVS – Qual foi essa faculdade?
Larry – Fiz Pedagogia na Faculdade de Filosofia Santa Doroteia e, alem do magistério, pude cursar também habilitações na área de orientação educacional, supervisão e administração escolar. Ao mesmo tempo trabalhava no Senai e passei a trabalhar também na faculdade, como professor assistente de psicologia da educação. Nesse meio-tempo surgiu o concurso para o magistério estadual, em 1985. Fiz o concurso e fui convocado em 1987 e permaneço no estado até hoje. Inicialmente, trabalhei no Ienf (Instituto de Educação de Nova Friburgo), depois no CES (Centro de Estudos Supletivos), onde permaneço até hoje.
AVS – O pensador Sérgio Buarque de Holanda, falando sobre nossa formação cultural, diz o seguinte: “Existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de praticar e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro – audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem – tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espaçosa do mundo, característica desse tipo”. Qual sua visão sobre essa oposição?
Larry – Acredito muito na educação, que seja por meio dela que vamos desenvolver um pouco mais valores éticos e definir que tipo de valores queremos. Estamos começando um projeto com um olhar desde a creche, imaginando que ser humano vamos ter daqui a 15 ou 20 anos. E além de ter esse olhar para a criança que está na creche, precisamos olhar para a família dessa criança. Não para se estabelecer um monitoramento da vida das pessoas, mas tentar saber que visão tem aquela família, que valores tem. A ideia é trazer também essa família para a escola, seja em um curso de jovens e adultos, seja na discussão de valores, seja em orientações apoiadas em uma simples informação sobre o lavar as mãos, por exemplo, sobre o porquê de se dar a descarga e tampar o vaso sanitário. A ideia é que tenhamos, já na educação infantil, que vai dos 4 meses aos 6 anos, um olhar diferenciado para essas crianças. Montamos uma equipe multidisciplinar, multiprofissional, com médicos, dentistas, fonoaudiólogos, psicólogos, psicopedagogos, orientadores educacionais, professores e alguns convênios com entidades que possam contribuir.
É a partir da educação infantil que poderemos entender as distorções entre as séries e as idades, em que jovens com 14, 15 anos, ainda estão nas primeiras séries.
AVS – A sociedade de Nova Friburgo vem sofrendo profundas mudanças, nos últimos 25 anos, tanto na área da indústria como na da agricultura, que alteram o modo de viver. O que esta sociedade — e não só instituições como a Secretaria de Educação — precisa fazer para enfrentar os abalos causados por essas mudanças?
Larry – Tenho ultimamente me dedicado um pouco sobre a chamada questão das vocações e das identidades dos lugares e das pessoas, nessas mudanças sociais e culturais. Na área metal-mecânica, por exemplo: fui de uma época em que trocávamos de emprego por convite. Trabalhávamos e as empresas tinham sempre uma oferta [de emprego] maior do que a procura. Com isto as empresas estavam sempre nos convidando, sempre com alguma melhoria nas condições de trabalho, no salário. Esta situação tem se modificado e hoje, em vez das grandes empresas metal-mecânicas e têxteis, temos as confecções. Essas modificações é que têm me levado a pensar que a Secretaria de Educação precisa atuar na área da cultura, buscando o viés do mundo do trabalho, porque a superação das dificuldades [geradas pelas mudanças] não vem sozinha, é preciso um motor, digamos assim: ou uma instituição social, ou uma prefeitura, instituições que possam mostrar às pessoas que não são mais possíveis as atividades que vinham exercendo, e que é possível crescer e criar alguma coisa. Essa criação precisa acontecer porque, se formos trabalhar exclusivamente em cima daquilo que tínhamos 20 ou 30 anos atrás, vamos contribuir para que as pessoas fiquem desesperançadas, que não tenham perspectiva de trabalho ... O ser humano é múltiplo e entendo que essa multiplicidade permite que possamos mudar de paradigmas com um pouco mais de mais de liquidez, como diz o [sociólogo polonês Zigmunt] Bauman. Não dá para se imaginar que vamos ter atividades que perdurem para sempre.
AVS – Sua visão, então, é de que o sistema educacional precisa estar a serviço da mudança?
Larry – Penso que não só a serviço da mudança, mas que ele dever ser o carro-chefe dessa mudança. Hoje nos sentimos muito como reféns da produção de cultura, tal é o volume da oferta que recebemos. Se há outras cabeças pensantes fora da Secretaria de Educação, principalmente na iniciativa privada, por que não ter essa gente dentro do sistema público de ensino?
AVS – Em nossa conversa apareceu mais de uma vez a palavra “criação”. É preciso estimular o lado criativo das pessoas, é esta a proposta?
Larry – Com certeza, temos, por exemplo, o programa Mais educação, que tem como fundamento maior fortalecer nossas escolas, oferecendo um sem-número de possibilidades na área dos esportes, das artes, seja na da pintura, da música, enfim, não podemos abrir mão da visão do homem como um ser de sonhos, que possa fazer reflexões. É na reflexão que se busca levantar as possibilidades de um povo. Não nascemos para rastejar, mas para voar e a educação pode ser o estimulador da busca desses voos mais altos. Não consigo me imaginar atrás de uma mesa administrando o que é óbvio.
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