Maurício Siaines (*)
Neste ano de eleições é útil refletir sobre a relação entre a política e as mudanças sociais, especialmente a superação dos valores da sociedade escravista e do coronelismo, ainda tão vivos, que volta e meia se expressam em acontecimentos de natureza política ou policial.
A revolucionária alemã Rosa Luxemburgo (1871-1919), tem uma frase que se tornou um vaticínio para o que aconteceu no período que o historiador Eric Hobsbawm chamou de breve século 20: “Depois do imperialismo, ou o socialismo ou a barbárie”. Quando ela falava em imperialismo referia-se ao processo de expansão do capital que culminou com a Primeira Guerra Mundial. Rosa foi assassinada em 1919 por milícias de extrema direita, que mais tarde vieram a apoiar o nazismo. Não assistiu, assim, aos horrores da Segunda Guerra Mundial, não viu funcionar a lógica política nascida da bomba de Hiroshima, nem os massacres das guerras coloniais, das quais a Guerra do Vietnã foi uma extensão.
A revolução socialista seria a alternativa a esse mundo que veio depois. E para os revolucionários de todo o mundo, a Revolução Russa de 1917 simbolizava a esperança da realização dessa alternativa. O principal líder dessa revolução, Vladimir Ilyitch Ulianov, que ficou conhecido como Lênin, escreveu um livro muito importante para o seu entendimento. Ainda mais porque, como disse o sociólogo brasileiro Florestan Fernandes, de quem o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é um tributário intelectual, “o livro escrito sob a tensão da revolução social em processo preserva toda a sua necessidade e utilidade”. Trata-se de O Estado e a revolução, publicado em setembro de 1917, no calor da revolução que acontecia.
O livro define os caminhos necessários da revolução, realizando uma síntese do pensamento de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), aplicado a experiências anteriores, especialmente à da Comuna de Paris, de 1871, nas condições da guerra imperialista de 1914-1918. Trata-se, enfim, de uma reflexão para a ação revolucionária.
O socialismo, depois do imperialismo, aconteceu em parte e se deteriorou a partir da criação de elites burocráticas dirigentes, que agiram politicamente no sentido de atender a seu prório interesse. O fracasso do socialismo, porém, não significa a impossibilidade da mudança social e da utopia da solidariedade.
Trata-se de uma questão complexa e um dos problemas está na existência de forças que atuam na vida social e que são mais poderosas do que as estruturas econômicas, forças que fazem os seres humanos acreditarem em determinadas coisas, habituando-se ao mundo delimitado por essas crenças, e enxergarem a realidade apenas sob a perspectiva desses hábitos. Refiro-me aqui à cultura. As revoluções do século 20 paralisaram-se e até despertaram tendências conservadoras porque a cultura não se alterou, ou pouco se alterou.
Depois da Revolução Russa, por várias razões que não cabe aqui aprofundar, a burocratização e o autoritarismo se combinaram com a antiga cultura dos czares e da ‘mãe Rússia’, deixando de lado os projetos revolucionários. Assim, seria mais proveitoso para a transformação social preocupar-se com a revolução na cultura do que com a criação de um Estado revolucionário, o que soa como um contrassenso, pois Estado é necessariamente uma força conservadora, mesmo que em determinado momento possa realizar políticas públicas favoráveis à transformação social.
A cultura e as coisas do mundo
O ser humano tem a capacidade de representar as experiências que vive. Representar é tornar presente, não é necessário a presença de um cavalo para falar de cavalos. Falando de cavalos, meus interlocutores saberão a que estarei me referindo. Representação social é aquela compartilhada por um agrupamento social de tal modo que não seja criação de um indivíduo isolado. E é interessante notar que, muitas vezes, o indivíduo atua sem tomar consciência do caráter social das representações que adota e repete.
Esse conjunto de representações acontece em um ambiente virtual, que é a cultura. É nesse ambiente que se dá a atribuição de significados aos acontecimentos do mundo. Quando penso em algum artefato, uma faca ou uma chave de fenda, estou me referindo a integrantes da cultura. Tais ferramentas não precisam estar presentes materialmente para que eu me refira a elas. A presença da faca e da chave de fenda nesse ambiente virtual é que permite ao náufrago solitário recriá-las em uma ilha deserta. A cultura se forma da mesma maneira, em sociedades tribais e nas mais complexas. Em outras palavras, pode-se dizer que cultura é o conjunto de signos que representam a experiência do grupo social em questão. E estes signos podem se referir à política, à religião, às artes, a todo o fazer humano, enfim.
A ação política é condicionada pela cultura e a grande revolução no modo de viver só é possível se acontecer também no campo da cultura. Caso contrário haverá sempre a repetição, a perpetuação da mesmice, daquilo que sempre foi.
(*) Jornalista, mestre em sociologia
mauriciosiaines@gmail.com
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