Esaú e Jacó

segunda-feira, 22 de março de 2010
por Jornal A Voz da Serra

A vida social engendra representações de si própria. O tradutor alemão de Os sertões, de Euclides da Cunha, Berthold Zily, diz que o livro é uma espécie de mito de origem do Brasil. Além de mostrar um país que pouca gente via, também revela as atitudes que ele próprio provoca.

Houve época em que pessoas de esquerda queriam ver uma revolução no que aconteceu em Canudos. E a repressão violenta aos sertanejos parecia corroborar essa visão, sendo parte da luta entre revolução e contrarrevolução. Os dois lados tiveram ou têm seus partidários.

Seja como for, a versão de Euclides da Cunha do que aconteceu em Canudos foi durante muito tempo a principal. Enquanto isso, os nordestinos deixaram sua terra natal e migraram para o Sudeste. Seus sotaques e suas músicas emaranharam-se na vida de cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo.

Há um outro livro que, nascido no início do século 20 quase na mesma época de Os sertões (1902), sintetiza tendências da política e das inclinações ideológicas mais comuns no país: Esaú e Jacó (1904), de Machado de Assis. Conta a história de dois irmãos gêmeos ... mais do que isto: conta a história de um mundo do fim do império, de uma sociedade escravista, de privilégios nunca contestados. Os dois irmãos brigaram a vida inteira: sua mãe, Natividade, chega a rebaixar-se, segundo os valores da elite de que fazia parte, a ir consultar uma feiticeira (seria uma mãe de santo?), no Morro do Castelo, no Rio de Janeiro, porque achava que eles haviam brigado ainda dentro de seu ventre e queria saber o que isto pressagiava.

Apesar de se oporem em todos os momentos de suas existências, os gêmeos Pedro e Paulo veneravam igualmente a mãe e apaixonaram-se ambos pela mesma Flora, que morre jovem no meio da história. Ou seja, seus afetos se voltam para os mesmos pontos.

Esaú e Jacó parece uma profecia do que viriam a ser o PT e o PSDB atuais, que têm origens muito próximas, no tempo e na geografia, brigam sem parar, mas têm diversas afinidades e um se apropria de projetos do outro, que antes rejeitava.

Na próxima eleição presidencial teremos provavelmente o confronto entre a ministra Dilma Rousseff, pelo PT, e o governador José Serra, pelo PSDB. A primeira semelhança está no fato de que ambos nasceram para a política na luta contra a ditadura militar. Ambos também são coerentes com suas trajetórias de vida. Quais as a diferenças e semelhanças de propostas dos dois? Ambos representam impulsos inovadores aliados a tendências tradicionais: esta talvez seja a primeira resposta, antes do aprofundamento nas diferenças entre eles.

E, no mais? É difícil dizer. Mas a sociedade está viva e faz do governador e da ministra representações de forças suas, tal como o faz com a literatura. Dilma e Serra, neste momento, se parecem mais com personagens de uma história que está sendo escrita do que com lideranças. Até mesmo porque não estão dizendo nada que não seja conhecido há muito.

Ao final de Esaú e Jacó acontece o seguinte diálogo entre Natividade, mãe dos gêmeos, e seu amigo, o conselheiro Aires:

“– A senhora escreveu-me que eram candidatos de dous partidos contrários.

Natividade confirmou a notícia; foram eleitos em oposição um ao outro. Ambos apoiavam a República, Mas Paulo queria mais do que ela era, e Pedro achava que era bastante e sobeja. Mostravam-se sinceros, ardentes, ambiciosos; eram bem aceitos dos amigos, estudiosos, instruídos...

– Amam-se finalmente?

– A política é a paixão deles; paixão e ambição. Talvez já pensem na Presidência da República.

– Já?

– Não... isto é, sim; guarde segredo. Interroguei-os separadamente; confessaram-me que este era o seu sonho imperial. Resta saber o que fará um, se o outro subir primeiro.

– Derrubá-lo-á, naturalmente.

– Não graceje, conselheiro.

– Não é gracejo, baronesa. A senhora cuida que a política os desune; francamente, não. A política é um incidente, como a moça Flora foi outro...

– Ainda se lembram dela.

– Ainda?”

(*) Jornalista, mestre em sociologia

mauriciosiaines@gmail.com

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