A tragédia e a normalidade

segunda-feira, 08 de março de 2010
por Jornal A Voz da Serra

Maurício Siaines(*)

Tragédias como a que aconteceu no Chile na última semana, quando terremotos e tsunamis causaram a morte de mais de 800 pessoas, provocam acontecimentos, a respeito dos quais é preciso pensar. Refiro-me especificamente aos saques que se deram na cidade de Concepción, de quase 1 milhão de habitantes, que fica a 500 quilômetros de Santiago, pouco mais da distância entre Rio e São Paulo. Além das coisas materiais geradas pela catástrofe, algo se quebra na vida social que permite a alguns indivíduos abandonarem algumas noções dos limites entre si e os outros e praticarem atos que nunca fariam dentro da vida normal.

Os saques foram tantos que, de um lado, o governo mobilizou 14 mil soldados, com apoio de tanques de guerra, enviando-os para a região atingida. Além disso, grupos de cidadãos resolveram armar-se com os meios de que dispunham – tacos de beisebol e porretes em geral – para defender suas ruas e moradias. E não aconteceram saques apenas em busca de meios imediatos de sobrevivência, como comida, água, remédios. Chegam notícias de que “As pessoas também enchiam picapes com roupas e em alguns casos pequenos itens de mobília de lojas de departamentos” (Agência Estado, 28/2/2010). Eletrodomésticos grandes, como máquinas de lavar, também podiam ser vistos sendo carregados de lojas, nas imagens da confusão que passou a dominar Concepción. Um homem que tentou proteger sua casa foi morto por saqueadores. Os incidentes descambaram para assassinato em pelo menos um caso noticiado.

Duas inferências podem ser feitas a partir desses fatos:

1º – aconteceu, como já disse acima, uma quebra nos mecanismos de controle interiores aos indivíduos que em situações normais não se comportariam desse modo;

2º – os indivíduos que se comportaram desse modo, digamos, antissocial, provavelmente já tinham em si tal propensão dentro da vida normal, cuja quebra causada pelo terremoto e suas consequências teria liberado aquelas potencialidades.

Seriam desviantes os comportamentos manifestados nos saques? A quebra da ordem social, que uma catástrofe natural como a que aconteceu no Chile provoca, revela forças que estavam adormecidas na vida normal, mas que estavam lá. Por este motivo, a ideia de desvio fica um tanto deslocada. Mesmo o assassinato não parece desviante, mas algo que era uma possibilidade na época da vida normal. A ambição pelos bens conseguidos durante os saques já existia antes. A catástrofe liberou aquelas energias que estavam contidas pela ordem social.

Agora, outra questão: e nós que não estamos vivendo em uma situação social gerada pela catástrofe? Como é entre nós a relação com essa energia potencial de destruição e de práticas que entendemos como antissociais?

Dentro da normalidade, temos mecanismos de defesa, entre eles a execração do desviante. Execrar o indivíduo do mal pode fazer-nos sentirmo-nos virtuosos. Se o grupo social condena o criminoso e deseja em comum vê-lo punido passa a considerar a si próprio como defensor do bem contra o mal. Se for possível, então, assistir à sua punição, como acontecia com as execuções públicas, é quase um êxtase coletivo. Em outras palavras, o indivíduo do mal pode servir à instalação da comunidade do bem, por mais falso e hipócrita que isto possa parecer.

Precisamos da normalidade para viver. Precisamos da normalidade jurídica, para que haja leis justas a orientar a vida, geradas pela manifestação livre das vontades dos agentes sociais. Mas precisamos também não fingir, precisamos admitir que aquilo que chamamos de mal está em todo lugar. Como dizia o poeta, “de dentro do bem é que o mal trama, da felicidade nasce o drama dessas pobres de nós vidas humanas”.

(*) Jornalista, mestre em sociologia

mauriciosiaines@gmail.com

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