Parte 2
Na edição de ontem publicamos a primeira parte de uma reportagem mostrando um pouco das memórias da advogada Leyla Lopes, que ela começou a registrar em 1980. No início o objetivo era apenas registrar a história de sua família para que sua filha, Virgínia, pudesse mais tarde tomar conhecimento dos acontecimentos que marcaram sua época. Mas os cadernos de Leyla Lopes, que ganharam o nome de Corrente, são uma preciosidade. Aqui damos apenas uma pequena amostra desses documentos, que não apenas narram em detalhes como era a vida de Nova Friburgo desde os anos 40, como contêm desenhos, recortes de jornais e documentos diversos ilustrando tudo o que Leyla tem a contar.
O footing dos domingos na praça ocupa um bom número de páginas de um dos cadernos de Leyla Lopes. Ela conta que as moças e rapazes andavam em suas alamedas num vai e vem interminável, até a passagem do trem, que vinha de Sumidouro, por volta de 21h30, rumo à estação ferroviária. O trem, aliás, ocupa uma boa parte dos relatos de Leyla, que explica o nome de cada um, as estações, os horários, o itinerário, chegando ao requinte de desenhar o percurso e a ponte de ferro em arcos perto da estação de cargas.
Outro item interessante dos relatos de Leyla são as lutas de boxe realizadas no palco do Cine Leal, antigo Theatro Dona Eugênia, cujo palco era transformado em ringue. “Friburgo chegou a dar ao Brasil um campeão brasileiro na categoria meio-pesado, o famoso Pantera”, lembra. À medida que os relatos vão se aproximando do contexto histórico atual, ela passou a incorporar cada vez mais dados a seus cadernos. A partir daí, Leyla fala de acontecimentos nacionais e internacionais, como a epidemia de tifo, em 1935, o Estado Novo ou o ataque japonês a Pearl Harbor, a história de amor de Prestes e Olga Benário ou a morte de Anne Frank, por exemplo.
Mas, para os friburguenses, o mais interessante mesmo são as histórias da cidade naqueles velhos e bons tempos, as fotos das enchentes, as fantasias de Carnaval, os cassinos (há uma foto histórica do Cassino Turista, que ficava ali no Edifício União)...
Leyla Lopes registra diversos personagens marcantes da história de Nova Friburgo: Frederico Burkhardt, “o retratista mais competente da cidade”; o alfaiate Francisco Mastrangelo, cuja loja ficava no número 94 da Praça Getúlio Vargas, com uma vitrine iluminada com luz fluorescente e um manequim vestido com um terno impecável; seu Antônio Encerador, que espalhava cera nos assoalhos quando ainda não havia enceradeira; Xandoca, “um pretinho baixo, beiçola, de pés espalhados, que caminhava pelas ruas silenciosas, desertas e mal iluminadas, tocando seu pequeno cavaquinho”; as professoras particulares que lecionavam as “primeiras letras” e o curso primário em suas casas, gozando de muito prestígio na sociedade, como Helena Coutinho, Alzira e Hermínia Moura, Irene e Ítala Massa, Noêmia Carvalho, Lourdes Ventura, Cely Ennes, Jandyra Lima e outras mais.
Ela se lembra com extrema saudade do Bazar São João, “a pequena loja da rua principal”, que ficava na Alberto Braune, quase em frente à residência de Dona Elisa Sertã (esquina da Rua Duque de Caxias). A loja pertencia a João Batista Duarte, “um senhor com os óculos na ponta do nariz, que lembrava o Gepetto da história do Pinóquio”. Ela destaca também a figura da espanhola dona Flora, que consertava guarda-chuvas, e de Josefina, “uma personagem saída dos romances de Jorge Amado, com seus cabelos longos, negros e lisos, sapatos bem altos e roupa muito justa, ressaltando as curvas de seu corpo escultural“.
Outro personagem presente nas memórias de Leyla é a adolescente Teresa Ramos Pinto, também chamada de Teresa Barroso, “uma figura fulgurante, com sua grossa trança alourada. Pedalava, com graciosidade, a sua bicicleta, em cuja pequena cesta colocava florinhas do campo”.
Ela se lembra também dos vendedores da Sorveteria Única, que apregoavam seus picolés pelas ruas da cidade, assim como do ‘japonês’, um cone de massa fina e crocante que era anunciado pelo som de uma matraca.
Leyla gasta boas páginas de um de seus cadernos para falar sobre o Hotel Engert, na esquina da Rua Augusto Cardoso, que ocupava todo um quarteirão. “O terreno, nos fundos do prédio do hotel, era todo arborizado, qual um parque, com grande variedade de árvores e de plantas, tendo muitas soqueiras de bambu, alamedas com banquinhos e balanços para as crianças”. Como não podia deixar de ser, ela se recorda também do Hotel Glória (hoje Willisau Center), e do Hotel Cassino Turista, na esquina da Rua Ernesto Brasílio (hoje Edifício União), onde eram realizados os bailes mais elegantes da cidade, banquetes e reuniões políticas, além, é claro, do jogo, que ainda era permitido por lei.
Os homens, conta, se encontravam na Lux (no térreo da atual Predial Primus), no Bar Atlantic e na Leiteria e Sorveteria Única, que pertencia ao espanhol José Ruiz Boléia, famoso pela excelência de seus sorvetes. Tinha também o Bar Edoardo, o popular Bar do Cunha, o Bar Universal, dos irmãos Lobianco, muito procurado pela qualidade dos artigos ali vendidos, inclusive um talharim preparado artesanalmente pelas senhoras da família.
Leyla se detém com muita ênfase na vida religiosa de Nova Friburgo, descrevendo as ladainhas, procissões, com as Estações da Via Sacra, em altares ornamentados com toalhas brancas, jarras de flores, castiçais e velas de cera nas portas das casas. Uma foto chama especialmente a atenção num dos cadernos de Leyla: a de um grupo de várias meninas vestidas de anjos, entre elas, a própria Leyla, assim como Margarida e Cora Ventura, Jane e Maria do Carmo Carestiato, Lia e Raquel El-Jaick, Maria Inês Jacob Santos, Marta Éboli, Zélia Côrtes Teixeira e Laura Cileda Frossard Bassani. Laura é aquela senhora que já há alguns anos anda pelas ruas da cidade de bicicleta, recolhendo caixas de papelão e outros objetos nas lixeiras.
Os presépios mereceram páginas e páginas de um dos cadernos, com destaque para o que era montado pelo advogado Júlio Vieira Zamith, em sua residência da Rua Alberto Braune, 75, e que era visitadíssimo.
"A partir da segunda metade dos anos 40 surgiram as escolas de samba Saudade e Alunos do Samba, que também era
chamada de Escola do Fluminense, pois funcionava no clube de futebol com este nome, que ficava ao lado da Capela de Santo Antônio, no Suspiro. As escolas tinham poucos componentes, que cabiam dentro de uma corda de isolamento, segura por simpatizantes das respectivas agremiações. Não havia samba-enredo. As escolas entoavam sambas ou marchinhas compostos especialmente para o tríduo de Momo, sucessos dos cantores da era do rádio”
"Os cortejos fúnebres, realizados a pé, saíam da casa do defunto, onde havia sido realizado o velório, ia à Matriz de São João Batista, para a cerimônia de encomendação do corpo, e depois seguia para o cemitério, ao som do dobrar dos sinos da igreja. Os enterros contavam sempre com a presença de Teófilo Marra, que prestava a sua solidariedade à família enlutada. Os caixões eram de tábuas, cobertas de tecidos pretos com dourado, roxos e brancos, estes últimos destinados às crianças e às virgens. As tampas dos caixões eram fechadas por laços de fita”
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