Nos cadernos de Leyla, as memórias da Nova Friburgo

quarta-feira, 03 de março de 2010
por Jornal A Voz da Serra

Dalva Ventura

Parte 1

Em 1980 a advogada Leyla Lopes começou a registrar suas memórias de menina e mocinha. A ideia era escrever a história de sua família, para que sua filha, Virgínia, mais tarde pudesse conhecer um pouco da vida de seus antepassados e dos acontecimentos que marcaram sua época. Tudo começou quando ela achou um pequeno baú com um monte de documentos que já estavam quase se desmanchando. A partir daí, tentou preservar esses papeis, colando-os num caderno, que ganhou o nome de Corrente.

De lá para cá já são mais de 20 cadernos que ela guarda com desvelo e uma boa dose de ciúme. Tanto que nem tem certeza se um dia vai doá-los ou não para o Pró-Memória. Mas, seria bom se isso viesse a ocorrer um dia, dado seu valor histórico e por representarem uma fonte preciosa de consultas. E também porque o material, mesmo agora, já não se encontra tão bem conservado quanto deveria.

Em cada um deles, Leyla Lopes armazena um enorme número de dados, informações e fatos pitorescos. Para quem gosta de reviver o passado ou de saber como era a vida naqueles tempos, eles são uma viagem no túnel do tempo. São uma delícia de se ler. Está tudo registrado ali. Apesar de ‘trabalhar’ diariamente em seus registros – escreve geralmente durante toda a tarde, até sete, oito horas da noite fica mergulhada em seus cadernos – Leyla ainda está registrando os fatos ocorridos nos idos de 2003. A defasagem, porém, diminui a cada dia.

No primeiro caderno, Leyla abordou basicamente a história de sua família materna. No segundo, o foco foi o Líbano, terra da família de seu pai, doutor Salim Lopes, e os primeiros tempos dele em Nova Friburgo, nos idos de 1919. É a partir daí que o trabalho de reconstrução histórica feito por Leyla passa a ter um interesse maior para os friburguenses. Até porque, além dos relatos, anexa a seus cadernos os mais diversos documentos e fotografias. Quando não os encontra, chega ao requinte de desenhar, com o maior capricho, o que merece ser conhecido visualmente.

Para contar a história deste período da cidade, em que ainda era muito pequena, Leyla se valeu basicamente das histórias que seu pai contava. Ela relata, por exemplo, como foi a criação da Sinimbu, que na época se chamava Fábrica Vilela, ou o incêndio do Cinema Glória, em 1931 (onde hoje fica o Edifício Comércio e Indústria, na Praça Dermeval Barbosa Moreira). A morte de Alberto Braune, em 1929, mereceu um grande destaque no caderno, com direito a fotos de sua pharmacia e dos consultórios que ficavam atrás da mesma. Os tuberculosos que ficavam internados no Sanatório Naval, cartazes e programas de circo, a mania das crianças de pedir santinhos aos padres na rua, as brincadeiras infantis, como chicotinho queimado, passar anel, pular corda, amarelinha, alturinha, peteca, patinetes, bolinhas de gude, pipa ou diabolim. Sem falar nas cantigas de roda, que estão todas lá, para quem quiser conferir.

Nos cadernos se pode ver também uma foto dos dois frondosos pés de fícus que se entrelaçavam na Praça Dermeval, do primeiro prédio da estação ferroviária, tirada em 1870, e do campo do Esperança, que era usado para realização de rodeios e relatos das disputas entusiasmadas entre as equipes do Friburgo, do Fluminense e do Esperança. Num dos cadernos se pode encontrar até fotos da construção do atual Ienf (na época, Grupo Escolar Ribeiro de Almeida), uma preciosidade. Noutro ela colou diversas fotos do Clube dos Lavradores, no Cônego, uma espécie de museu hoje desativado, com peças raras provenientes de plantas, minerais, tudo relacionado à natureza. Leyla também relata e mostra fotos da festa da cumeeira do Edifício Spinelli, em 1942.

“Enquanto brincávamos descuidadas, a paralisia infantil fazia muitas vítimas. Na Rua 3 de Outubro, atual Oliveira Botelho, a pólio atacou uma menina da família Carestiato e o neto da dona Mariquinha Jasmim, da casa 80. Ambos ficaram defeituosos. Ainda não existiam as vacinas Salck e Sabin. Era grande o número de pessoas com aparelhos e botas ortopédicas”

“A melhor diversão era ir ao Cinema Eldorado assistir desenhos animados, filmes de Carlitos e da dupla O Gordo e o Magro. Havia uma cena em que o Magro comia uma macarronada de barbante, o cinema todo ria e eu chorava com pena do Magro. Perguntava: como pode alguém achar graça de uma cena tão triste?”

“Circo eu não gostava não. Certos números me deixavam muito apreensiva, como os do trapézio e do globo da morte. Ficava nervosa e preocupada com a segurança dos artistas, com medo que lhes acontecesse algum acidente grave. Gostava muito de andar no carrossel quando aparecia algum parque de diversões em Friburgo”

“Os sapos vinham para as calçadas das avenidas ao entardecer. Eram em tão grande quantidade que com o silêncio da noite eu ouvia da minha casa o agradável coaxar dos batráquios nas margens do Bengalas”

“As meninas usavam laçarote no cabelo e seus vestidos de organdi eram muito rodados, não faltando babados e rendinhas. Como eram incômodos, espetavam muito a pele! Mas, em nome da boa educação, usávamos com toda a resignação, sem reclamar”

“O silêncio matinal era quebrado pelos apitos dos trens e das indústrias. Operários apressados se dirigiam às fábricas Ypu, Rendas, Filó, Villela (Sinimbu), Azulejos São José, Oficina Bizzotto e mais algumas. Uns calçavam tamancos de madeira que, em contato com o calçamento, produziam um ritmo cadenciado, qual tamborins marcando compasso de uma melodia. A passagem dos leiteiros era anunciada pelo chocalhar dos vasilhames de alumínio dependurados nos guidons de suas velhas bicicletas. João Batista Bucharel e Terenciano Bini tinham muita freguesia, mas, o que mais se destacava era o mulato José Siqueira, o Seu Siqueira, que empurrava um carrinho de mão em feitio de tonel. Outros vendedores iam de rua em rua, como os tripeiros, que vendiam miúdos de boi e de porco, os peixeiros, tendo como destaque a figura de Sebastião Peixeiro, o popular Virubicho”

“Em nossa cidade, os rapazes na idade da prestação do serviço militar tinham por instrutor o exigente tenente Renato Silveira Lopes, que por muitos anos dirigiu o Tiro de Guerra. No primeiro semestre de 44 começaram as convocações dos que deveriam lutar contra a dominação nazista. Por toda a parte, só se ouvia a Canção do Expedicionário. Nova Friburgo contribuiu com muitos expedicionários e, nas janelas de suas residências, eram colocadas flâmulas, com os seguintes dizeres: ‘Desta casa partiu um pracinha’. De todos os expedicionários friburguenses, o único que não voltou foi o soldado Antônio Durval de Moraes, nascido em Macaé de Cima e morto na Itália, com 24 anos” .

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