Maurício Siaines (*)
Uma questão curiosa é a relação entre o indivíduo e as normas legais. De um modo geral pensa-se que a norma é para ‘os outros’ e que, para ‘nós’, sempre podemos aproximar a norma de nossa conveniência. Assim, podemos ter leis extremamente rigorosas e não nos preocupar muito em cumpri-las, ‘porque ninguém cumpre mesmo’, porque sempre há um modo ‘amistoso’ de se resolverem questões. Assim, criamos leis que são impossíveis de serem cumpridas e nos acomodamos à tradição da ineficácia da lei, a gosto de uma ordem social marcada pelo coronelismo e pelo compadrio.
O sociólogo Norbert Elias (1897 – 1990) deteve-se com rigor no estudo dessa relação entre indivíduo e sociedade e observou que uma das dificuldades para o seu entendimento está no fato de os indivíduos serem concretos e a sociedade ser abstrata, embora seja real e muitas vezes se imponha ao indivíduo. Posso esbarrar em Fulano, brigar com Beltrano ou gostar de Sicrano, mas a relação com o casamento ou com o crime, por exemplo, é diferente, pois estes são criados e definidos pela ordem social.
As normas são produtos da relação social e é interessante observar que a lida com elas varia quase que de indivíduo para indivíduo, de um agrupamento social para outro, embora precisemos estabelecer a universalidade da lei em nosso ordenamento jurídico. É no espaço gerado por essa contradição que cresce e se cria um tipo de agrupamento social que não se preocupa com a lei por ela ser justa ou não, mas com os cuidados necessários a burlá-la em benefício de suas conveniências, do ganho a ser obtido.
Não se trata aqui apenas do conflito social decorrente de uma parte da sociedade impor normas ao conjunto, gerando insatisfações e rebeldias. Este problema pode ser superado pelas lutas políticas em uma sociedade democrática, embora, quase sempre, com grande dificuldade. Mas há um tipo de agrupamento social que adere a qualquer norma dominante e procura ajustar-se a ela de modo a obter o maior benefício. Darei o nome desse agrupamento humano de vagabundagem. Ela é uma força social, assim como o são os trabalhadores, os empresários, os religiosos, os militares, os funcionários públicos.
A vagabundagem nunca é militante de qualquer causa, embora possa se aproximar de diversas propostas de ação para delas tirar algum proveito. Em geral, o membro da vagabundagem não tem uma qualificação definida. Quando afirma ter um determinado ofício, faz isto como se fosse um título de nobreza e não a experiência de uma prática especializada em alguma coisa.
Parece que os partidos políticos, além dos militantes, acolhem em sua organização um grande número de membros da vagabundagem. Nos sistemas ditatoriais, onde não há de fato partidos, os representantes da vagabundagem exibem um perfil moralista e defensor da ordem estabelecida, não hesitando em apontar os desviantes e subversivos. O negócio da vagabundagem é o poder, não propriamente para exercê-lo, nem para se opor a ele, mas para se aproveitar de situações afeitas a ele: um carguinho aqui, uma graninha por fora ali, uma solenidade para aparecer com seriedade.
É claro que nas lutas políticas é preciso flexiblidade e fazer concessões, mas isto não significa abrir mão dos projetos que levaram à participação política. Alianças se formam entre grupos com diferentes princípios em função de circunstâncias. São legítimas essas coisas. Mas a vagabundagem é diferente, ela participa de qualquer projeto desde que possa se beneficiar. E é da vagabundagem que precisamos nos livrar, em benefício da democracia e da superação justa dos conflitos.
(*) Jornalista, mestre em sociologia
mauriciosiaines@gmail.com
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