Música na escola ou surdez total

quinta-feira, 19 de novembro de 2009
por Jornal A Voz da Serra

Por: Marco Aurélio A. da Silva (*)

Quando a educação musical deixa de se fazer presente nas escolas e na vida social da população, deixa-se, não apenas, de renovar talentos, de negar ao cidadão o direito a cultura, de furtar das crianças e jovens a possibilidade de um futuro digno, mas, também, impossibilita a formação de um público inteligente e qualificado, capaz de valorizar e consumir algo diferente e mais expressivo, algo que lhe acrescente novos valores, algo que lhe estimule o exercício do pensar e aflore seus sentimentos mais puros. A história nos mostra que, desde os primórdios da humanidade, o homem se relaciona com a música e, através dela, estreita seu contato com o mundo e consigo mesmo. Hoje, vivemos uma triste e enfática realidade: perpassa, pela cultura e pela educação, um total desinteresse, uma ‘cegueira voluntária’. No mercado, fenômenos de vendas são confundidos com realizações artísticas. Nossa educação musical anda sem espaço, deixando uma enorme lacuna na formação de nossos alunos. Estudos científicos comprovam a importância do ensino musical para o desenvolvimento do ser humano e, mesmo assim, nossas crianças estão cada vez mais carentes neste sentido; quando não raro, encontramos adultos que, ao procurarem alguma informação musical, mostram enormes dificuldades (não somente relacionadas diretamente ao estudo musical) que poderiam e seriam facilmente resolvidas se tivessem a oportunidade de estudar música na infância e, para agravar ainda mais o cenário cultural caótico em que vivemos, nossa sociedade está, gradualmente, ficando surda; sim, surda; cultural e patologicamente surda. Precisamos, então, ensinar, novamente, a sociedade a ouvir.

O mundo está repleto de sons e o silêncio absoluto talvez não exista. Ainda no ventre materno temos os primeiros contatos com o universo sonoro. O pulsar do coração e o mergulho no líquido amniótico que nos envolve formam nossa primeira paisagem sonora. Depois, as vozes materna e paterna e os sons do mundo à nossa volta logo se somam a esta paisagem que começa a ser colorida.

Podemos também, enquanto nos concentramos neste pensamento, descrever os sons que ouvimos à nossa volta. Acerca disso, Rosa Fucks, em seu livro O Discurso do Silêncio, cita John Cage: “Nenhum som teme o silêncio que o extingue, e nenhum silêncio existe que não esteja grávido de sons”. (1991, p.16).

Quando pensamos em educação musical, precisamos estar atentos ao universo sonoro ambiental e assim percebemos que o mundo a nossa volta é sonoro; os sons estão em toda parte e o sentido da audição, principal forma de percepção sonora, não possui, de forma literal, um botão de ligar ou desligar. Schafer, compositor e pesquisador canadense, destaca: “O sentido da audição não pode ser desligado à vontade. Não existem pálpebras auditivas. Quando dormimos, nossa percepção sonora é a última porta a se fechar, e é também a primeira a se abrir quando acordamos”(2001, p.29). Villa-Lobos, compositor e educador brasileiro, se preocupava, já na década de 1930, com a necessidade de se formar público capaz de apreciar, através de uma audição mais seleta, a arte musical das gerações que estavam por vir, ou seja, com a formação de um ouvinte inteligente capaz de ouvir e selecionar o que é significativo ou não para si, para a sociedade e para seu ambiente.Wagner, compositor alemão, apud Schafer, nos diz que “O homem voltado para o exterior apela para o olho; o homem interiorizado, para o ouvido”(idem). Poderíamos completar dizendo: O ser humano pouco atento aos sons que houve é como alguém que enxerga, mas não vê. A percepção do universo sonoro de forma inteligente perpassa, de maneira interdisciplinar, pela educação musical, pois música, educação e ambiente formam uma tríade em constante tangência. Quem poderia melhor trabalhar a percepção sonora que os professores de educação musical? Para isto, primeiramente, nós, educadores musicais, precisamos estar abertos a aprender mais do que ensinar, pois o universo sonoro está em constante mutação, o que nos obriga a uma reciclagem cotidianamente atenta. Como sons e mais sons são acrescidos dia a dia, formando uma macrocomposição, podemos encarar os sons ambientais como uma peça musical em dimensões universais. Assim, em nossa função de mediadores, precisamos romper com modelos e paradigmas pouco flexíveis.

Destaco, aqui, o trabalho de pesquisa que a professora doutora Marisa Trench de Oliveira Fonterrada vem realizando no sentido de fomentar pesquisas que unam música e ambiente, contribuindo, assim, para a inserção de temas relacionados a esta temática junto à comunidade de educação musical, pois, encontramos, frequentemente, muitas barreiras no Brasil para a ampliação do olhar em relação a dicotomia som/ruído, ou melhor, poluição sonora e música; algumas destas barreiras são diretamente relacionadas à forma com que o ensino de música vem sendo pensado e discutido no Brasil.

Recentemente o Congresso Nacional aprovou e o presidente da República sancionou a lei nº 11.769 que torna obrigatório o ensino de música nas escolas e isto se configura em vitória expressiva para a sociedade brasileira; porém, a educação musical não deve ser pensada de forma desarticulada do ambiente social. O pensar contextualizado e significativo deve estar presente também na vida dos educadores músicos, construindo assim saberes de uma arte que se dá no tempo e não nos permite negligenciar o ambiente sônico ao seu redor. A música do passado teve seu lugar num tempo social que lhe permitiu existir da maneira e forma que é, ao passo que a música do presente existe no tempo que hoje lhe oportuniza e não no tempo do passado. Sendo assim, buscar compreender o nosso universo sonoro deve ser o primeiro passo a ser dado. A paisagem sonora do século XVII é muito diferente da de hoje e podemos, através da história e da música, imaginar como ela era, sem conseguir, contudo, influir no que já foi. Hoje somos os atores principais de nossa história sonora e entendê-la.

Por música do passado entende-se toda e qualquer produção musical anterior à música do nosso tempo, cultural e esteticamente. Pode influir de maneira positiva no que ela será amanhã, despertando nos alunos o prazer da descoberta e não somente a falsa certeza da constatação.

A questão da poluição sonora se relaciona à falta de cuidado e atenção à percepção sonora. Neste sentido, o educador musical se torna uma peça chave na construção de uma audição cuidadosa e atenta, voltada para a qualidade dos sons e preocupada com o ambiente sonoro atual e futuro, pois através da música, a educação pode contribuir para o despertar de uma consciência responsável acerca do ambiente sônico. Se quisermos ouvir o cantar de pássaros no futuro, teremos que diminuir, agora, os sons que poluem nosso ambiente. Para tanto, estão preparados os professores de música e os pedagogos em geral?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FUCKS, Rosa. O Discurso do Silêncio. Rio de Janeiro: Enelivros Editora e Livraria Ltda, 1991.

SCHAFER, R. Murray. A Afinação do Mundo. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 2001.

(*) Bacharel em música, licenciado em música, especialista em ensino superior, mestre em ensino de ciências do ambiente e doutorando em ciências da cultura. Professor do Departamento de Artes/Música da Universidade Federal do Maranhão

e-mail: marcoaurelio.musica@ufma.br

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