Maurício Siaines (*)
O povo que vivia na região de Lumiar, em grande parte descendente dos suíços e alemães que vieram para Nova Friburgo no início do século 19, era muito ligado à religião católica, que orientava o modo como a comunidade se organizava, não só pela visão de mundo que trazia, como também, pelas práticas diárias.
Em meados dos anos 50, um grupo de pessoas ligadas à igreja Assembleia de Deus tentou se estabelecer na localidade e acabou sendo expulso, num ato de extrema violência. Os católicos se reuniram na Praça Carlos Maria Marchon, onde está o coreto, no centro de Lumiar, e dali partiram para o caminho que leva a Boa Esperança, onde estava a igreja evangélica, que derrubaram, ateando fogo ao que fosse possível queimar. Os atacantes voltaram, em seguida, ao coreto – que não era o atual, mas estava no mesmo lugar –, onde rezaram uma Ave Maria, oração exclusiva dos católicos, diferentemente do Pai Nosso, compartilhado por todos os cristãos. Ou seja, o grupo afirmou sua diferença em relação ao outro que tentava se estabelecer.
Embora alguns dos participantes do assalto estejam vivos, o episódio é difícil de reconstituir, inclusive as datas, porque uma espécie de conspiração de silêncio se formou a respeito dele. Há quem diga que havia a convicção entre os lumiarenses de que os evangélicos chegados ameaçavam os locais, dizendo que puniriam aqueles que não se convertessem à sua religião castrando os homens e arrancando os seios das mulheres. A ameaça pode hoje ser entendida como inverossímil: como um grupo minoritário que chega poderia esperar convencer alguém com tal tipo cartão de visitas? Mas o fato é que o grupo estabelecido viu naqueles que chegavam um perigo, algo relacionado com o mal, que precisava ser extirpado da localidade.
O sociólogo Norbert Elias (1897-1990) tem um livro que, tratando de acontecimentos aparentemente banais de uma pequena cidade inglesa, propõe questões que ajudam a pensar o porquê do fenômeno da discriminação. Trata-se de Os estabelecidos e os outsiders, de 1994, publicado no Brasil por Jorge Zahar Editor, em 2000.
Elias analisa a rejeição que parte da população da cidade, a que ele dá o nome fictício de Winston Parva, nutre em relação à outra, sendo que o único fato que diferenciava esta última era ter se estabelecido mais recentemente no lugar. No resto, tanto o grupo que rejeitava, quanto o rejeitado eram formados de ingleses, protestantes e, em grande parte, operários. Apesar dessa aparente homogeneidade, Elias observa que existem fronteiras entre as comunidades, “o desrespeito a essas fronteiras pode ser fatal”.
Tentando dar uma explicação para o fenômeno, diz o seguinte:
“Os grupos humanos vivem na maioria das vezes com medo uns dos outros, e frequentemente sem conseguirem articular ou esclarecer as razões do seu medo. Eles se observam mutuamente, enquanto se tornam mais fracos ou mais fortes. Sempre que possível, tentam evitar que um grupo vizinho alcance um potencial maior do que o próprio.” Ele acredita que este fato não é ocasional, nem acidental, mas algo a que os grupos precisam se apegar, “traços estruturais” daquilo que o grupo pensa de si próprio. E isto leva a que o grupo procure fortalecer sua autoestima coletiva porque esta favorece sua integração.
Neste século 21, tido e havido como o tempo da integração entre os povos, do que foi chamado de globalização, quantas atitudes de repúdio ao diferente podemos encontrar em nosso dia a dia? Diferente pela história de vida, pela cor da pele, pelo modo como usa a sexualidade. “Não gosto de paulistas”, “os baianos são preguiçosos”, “o povo do Sul é mais civilizado”, “isso é coisa de favelado”: quantas frases como estas, de conteúdo discriminatório, circulam por aí? Será o medo que as faz nascer? Seja o que for, vale a pena fazer esforço para superar esses preconceitos, pois os gestos violentos que surgem da atitude discriminatória precisam ser evitados.
(*) Jornalista
mauriciosiaines@gmail.com
Deixe o seu comentário