Maurício Siaines (*)
Às vezes o trabalho do historiador precisa do complemento da literatura para a recriação de mundos passados que ainda se estendem ao presente. Assim, o romance Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, complementa o entendimento histórico, pois dá vida às relações sociais desvendadas pela pesquisa histórica através de seus personagens.
Nego Leléu é um desses personagens. É um ex-escravo que tem vários negócios meio à margem da economia formal da ilha de Itaparica, no litoral da Bahia, próximo a Salvador, no século 19. A única maneira de Nego Leléu poder sobreviver e ter seus negócios é ser subserviente, ou simular a subserviência desejada pelos senhores. Trata com extrema deferência os senhores brancos que impõem sua ordem, que pode ser definida em trecho de discurso de outro personagem, Antônia Vitória, baronesa de Pirapuama, diante de uma escrava:
“A desobediência! A desobediência! Será que terei de bradar aos céus pela Eternidade que, pela comida que damos, pelo teto que emprestamos, pelas tribulações e vexações que amargamos por conta de tua laia imprestável, por tudo isso só cobro em troco a obediência? A obediência! Não é muito pedi-la a cães e alimárias, mas parece necessitar de compreensão em demasia para a ausência de tino e sentimento dessa raça.”
Parece extremamente atual o lamento da baronesa. Os donos do poder desconhecem a diferença entre disciplina e obediência e só desejam a segunda de parte daqueles que consideram seus subordinados. Nego Leléu, sim, sabe o que é disciplina, o recurso de que se vale para submeter-se a seus próprios objetivos, diferentemente de Perilo Ambrósio, barão de Pirapuama, que só conhece a busca do gozo, que lhe permite o poder e a riqueza que conquistou com artimanhas violentas, durante o processo de independência do Brasil.
Nego Leléu trabalha sem parar. “Tudo neste mundo se consegue com trabalho e quem é preto consegue menos com muito mais trabalho, então tem de trabalhar em todos os trabalhos e trabalhar o tempo todo e trabalhar sem distrair e sempre acreditar que alguém quer tomar o resultado do trabalho”. Nego Leléu é um empreendedor que opera à margem da ordem escravista brasileira, que, obtendo lucros, reinvestiu parte deles em atividades produtivas e “enterrou uma caixa de patacões num lugar marcado que só ele sabia”, tesouro que volta e meia era acrescido de dividendos, “mais dinheiro escondido no quintal”. Ele faz qualquer espécie de negócio, além de emprestar dinheiro a juros e agenciar favores sexuais aos senhores brancos.
Sua frieza calculista foi quebrada, a certa altura da vida por uma menina que tem como neta, Maria da Fé, filha de Vevé. Dafé foi o chamego de sua vida, a quem dedicou sua proteção e toda a educação possível. Queria que Dafé fosse professora. Um dia, porém, Dafé e Vevé, voltando para casa foram assediadas por quatro garotos brancos, desses que existem até hoje, que gostam de espancar mulheres, atear fogo em gente que dorme na rua, coisas assim de bons meninos bem-educados. Os quatro mataram Vevé e estupraram Dafé, que entrou, então, em um estado de torpor que iria durar muito tempo.
Leléu não tinha qualquer recurso institucional contra os garotos. O estupro de mulheres negras por brancos era coisa normal e o assassinato de mulheres negras não chegava a ser um crime ... coisa de garoto. O que ele poderia fazer, queixar-se ao bispo? A única coisa que pôde fazer foi vingar-se e ele o fez com a maestria que lhe era peculiar. Caçou os pobres dos garotos de família e matou-os, um de cada vez. E depois ... bem, depois a história continua. Não é nada, não é nada, o livro de João Ubaldo tem 673 páginas e a história que ele conta revela relações sociais e valores que ainda estão vivos, o que aumenta seu valor como obra que provoca reflexão.
São milhões de personagens como Nego Leléu presentes na história do Brasil, que travam uma luta surda, sem qualquer glória e sem reconhecimento. A ordem que desconhece a lei, com seus princípios igualitários, foi sempre empecilho para que tais personagens pudessem moldar os acontecimentos. Sem a lei não pode haver contratos e, consequentemente, os negócios só podem ser aqueles que aumentam a riqueza dos senhores e seus protegidos, ou aqueles realizados marginalmente. Isto é, a riqueza circula pouco e lentamente. E, não obstante isto, o país passou por transformações sucessivas.
E há quem diga que na história do povo brasileiro não há lutas e que disciplina é algo estranho, que precisa ser buscada na experiência de outros povos, de preferência europeus, mas não da península ibérica, nem da Itália. Teria que ser de gente vinda de mais ao norte, rara por aqui. Que se há de fazer? Contra crenças não há argumentos.
(*) Jornalista – mauriciosiaines@gmail.com
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