Execração pública

segunda-feira, 10 de agosto de 2009
por Jornal A Voz da Serra

Maurício Siaines (*)

Não há nenhuma revelação excepcionalmente nova nas conversas telefônicas entre os Sarney, gravadas pela Polícia Federal e publicadas na quarta-feira, 22 de julho de 2009, pelo jornal O Estado de São Paulo e reproduzida posteriormente em todos os meios de comunicação. Não é surpresa para ninguém um coronel da política sugar recursos públicos e favorecer sua parentela, montando seu esquema de poder, que é muito mais forte que qualquer partido político. Os partidos teriam se formado, supostamente, com base em princípios e projetos. Como estes, na realidade, são mera encenação, não valem nada, os partidos também diminuem de importância. O que importa para se avaliar um grupo político é o coronel que o lidera, seus contatos, seus compromissos, suas possibilidades de obter e distribuir favores. Com tudo pago, é claro.

Apesar de não haver nada de novo, tem sido grande espetáculo a exposição das tramas da família Sarney, que pode ser medido pelo tempo de televisão dedicado ao assunto, o número de páginas dos principais jornais, o grande número de cartas de leitores para esses mesmos jornais. E agora? O que o PT vai fazer? E o Lula, como é que fica? É igual a acompanhar uma novela: o que fará este ou aquele personagem diante do novo fato?

A publicação das conversas telefônicas gravadas permitem aquele prazer que se tem quando o personagem da novela é pego com a boca na botija, com todos os efeitos musicais e visuais. Agora, sim, todos os nossos desejos de vingança estão legitimados. Como os franceses, durante a revolução do final do século 18, poderíamos ir para a praça ter o prazer de ver a guilhotina funcionar.

Durante o chamado período de terror da Revolução Francesa, no ano de 1793, havia um grupo de mulheres que todos os dias se juntavam diante da guilhotina, cada uma levando consigo o tricô que todas faziam durante o show. Elas, conhecidas como as tricoteiras, assistiam ao trabalho do carrasco Sansom, que consistia em deitar o condenado com o pescoço embaixo da lâmina, deixá-la cair, recolher a cabeça que rolara para dentro do cesto colocado adiante, e exibir aquela cabeça ao público.

Não basta rotular de cruel o espetáculo da realização da vingança. Ele é proporcional às humilhações acumuladas durante séculos. A ideia de vingança está na letra da Marselhesa, composta naquela época, Hino Nacional da França de hoje: Amor sagrado da pátria, conduza erguidos nossos braços vingadores! (...) que um sangue impuro embeberá nossas terras.

A exposição dos Sarney satisfaz um pouco o desejo coletivo. A única novidade é terem sido pegos em flagrante, fazendo o que sempre fizeram.

Acaba sendo até engraçado ver os personagens atingidos fingindo que não era bem isso, ou que não consideravam errado, ou não tinham intenção ou qualquer coisa assim. Afinal, qual é o problema de o presidente do Congresso Nacional, arranjar um emprego para o namorado da neta de um modo bem comum, embora ilegal?

Nessa historinha está resumida boa parte das práticas seculares dos homens do poder no Brasil. O espaço público é uma extensão de suas casas, onde eles podem fazer o que querem. No romance A ilustre casa de Ramires, do escritor português Eça de Queirós (1845-1900), o personagem Gonçalo Ramires, um fidalgo, age da mesma maneira. O livro é de 1894 e descreve as, já naquela época, antiquadas relações sociais de Portugal. Fidalgo, etimologicamente, significa filho de algo, ou de alguém, isto é, de alguém poderoso, de alguém distinto.

Os fidalgos sempre dominaram nossa política, criando situações que favoreciam a si próprios, com um desprezo olímpico pelos mortais comuns. Enriqueceram com a escravidão, aderiram à república, estiveram presentes em todos os governos, sempre com aquela cordialidade, com a fala mansa e com a tranquilidade nascida da certeza de que nada poderia abalá-los, de que o mundo seria sempre o mesmo. Esse incidente com os fidalgos Sarney, a indignação que eles provocaram, numa perspectiva otimista, pode ser o início de alguma mudança de atitude coletiva.A execração pública dos personagens envolvidos é a guilhotina destes tempos em que tudo é mídia. A exposição que se faz deles agora pode ser como aquela a que os condenados da Revolução Francesa eram submetidos no carro que os conduzia da prisão para a praça onde estava a guilhotina, atual Place de la Concorde, em Paris.

Embora o desejo de vingança, pelo menos historicamente, seja justificável, a questão é que ela não resolve o problema de uma organização social, no nosso caso, secularmente voltada para atender aos desejos dos coronéis e seus protegidos. Não bastaria cortar as cabeças dessas figuras que controlam o poder no país. O prazer que se tem quando se veem os personagens maléficos dessa trama da política nacional pegos em flagrante não leva muito adiante. É preciso, não apenas cortar a cabeça do coronel, mas enterrar definitivamente a instituição do coronelismo, das trocas de favores, do compadrio.

(*) Jornalista

mauriciosiaines@gmail.com

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