Saudades da ditadura

segunda-feira, 20 de julho de 2009
por Jornal A Voz da Serra

Maurício Siaines (*)

Os últimos espetáculos do jogo de poder e do tráfico de influências têm alimentado desejos de retorno àquela realidade política que assolou o país entre 1964 e 1985. Muitos manifestam esse desejo sutilmente e alguns de maneira escancarada.

A farra de trocas de favores, volta e meia denunciada, é algo mais profundo, relacionado com a formação cultural da ordem política. As estruturas de poder costumam agregar a si um agrupamento social caracterizado pela malandragem, composto de figuras humanas afeitas à arte do se dar bem acima de tudo, independente de qualquer compromisso ético ou ideológico. Nos sistemas políticos mais fechados e autoritários esse agrupamento social é protegido pelas restrições à crítica pública e à apuração de informações. Mas ele existe e talvez até tenha mais força. Quem tem saudade do regime autoritário acredita que ele estava imune a essas práticas que hoje nos repugnam, o que não é verdade.

O regime militar nasceu de uma vertente cultural muito forte no Brasil desde o início da República. O exército foi uma força social nova no ambiente do final do Império e, em seu processo de formação é preciso considerar a identidade que se estabeleceu entre os indivíduos que o formavam. Intelectuais adeptos filosofia positivista tiveram grande influência na formação da oficialidade do exército brasileiro, a partir do último quarto do século 19. Eles acreditavam poder consertar a vida social com base na ciência e se inclinavam por soluções ditatoriais. O problema é que o saber científico não é completo o suficiente para formular leis definitivas, especialmente quando se volta para a vida social.

O lema de nossa bandeira nacional é oriundo do positivismo. Augusto Comte falava em ter o amor por princípio, a ordem por meio e o progresso por fim. Quando elaborou sua classificação das ciências considerou a sociologia a de maior complexidade, que requeria o conhecimento de todas as outras ciências para seu estudo. Assim, com um raciocínio extremamente influenciado pela física newtoniana, dividiu a sociologia em estática, que teria como objeto a ordem, e dinâmica, que se ocuparia do progresso, da evolução. E esta afeição às ciências da natureza, notadamente a física e a biologia, foi transposta para as tentativas de estudo da sociedade, com uma característica mais de ideologia do que propriamente de ciência.

Mesmo que consideremos diversas formulações ideológicas presentes no meio militar como originadas ou reforçadas nas condições históricas da guerra fria, como o anticomunismo, não se pode esquecer a importância do positivismo como orientador de ações políticas dos militares. Especialmente a crença quase religiosa na ciência, o que se constitui, por si só, em um contrassenso.

Produto dos mais autênticos desse meio cultural militar positivista foi o general Ernesto Geisel, que presidiu o país entre 1975 e 1978. Embora fosse um dos líderes mais ideológicos, mais crente nos princípios do regime de 64, foi ele quem arquitetou e dirigiu seu processo de desmonte, com o auxílio do general Golbery do Couto e Silva. Em seu governo começou-se a falar em “distensão lenta e gradual”. É como se Geisel, a partir de um determinado momento, tivesse tido a percepção de que não seria possível governar um país tão complexo, com tanta variedade social, com base apenas em um pequeno grupo fechado de pessoas organizadas na corporação militar.

Crises sérias ocorridas nesse período eram resultado dessa contradição, no pequeno meio militar, entre forças favoráveis e opostas a esse processo de liberalização. Para se ter ideia do quanto era restrito esse colegiado que definia os rumos do país vale lembrar que apenas 118 pessoas – o generalato do exército – definiram a sucessão do presidente Costa e Silva, em 1969/70. Força menos numerosa, a Marinha contribuiu com 65 eleitores, e a Aeronáutica com outro tanto. Pode-se afirmar com certeza que foram menos de 300 pessoas a decidirem a solução da crise nascida na edição do Ato Institucional nº 5 e agravada pelo afastamento e morte de Costa e Silva. Tanto as formulações positivistas como as acomodações ideológicas autoritárias são marcadas pelo distanciamento entre as ideias e a vida real.

Mas nenhum regime é suficientemente forte para ser imune à influência da vida social. O pensador Umberto Eco propõe uma questão interessante a este respeito:

“(...) por trás de um regime e de sua ideologia há sempre um modo de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis. (Umberto Eco, O fascismo eterno in Eco, Umberto, Cinco escritos morais. Rio de Janeiro, Record, 1998, p.34.)”

E tudo isto, que a “série de hábitos culturais” e a “nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis” fazem acontecer através da ação dos indivíduos que se tornam sujeitos políticos, não pode ser controlado apenas por um grupo isolado de 300 pessoas entre mais de cem milhões. Mesmo que isto pudesse ser uma coisa boa, isto é, que houvesse um grupo de iluminados que detivesse uma espécie de fórmula da grande solução, a aplicação desta fórmula dependeria dessas forças. E a democracia é o único regime que permite que essas forças – repito: a “série de hábitos culturais” e a “nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis” – possam se manifestar e possam chegar a sínteses.

O único modo possível de se banir da vida política a corrupção, as barganhas políticas às escondidas, de superar o que Roberto DaMatta chamou de “sistema de favor, de deferências, de sujeições e desigualdades” é trazer à luz as forças obscuras que o movimentam. E essas forças têm lógicas próprias, têm história, podem ser entendidas.

(*) Jornalista - mauriciosiaines@gmail.com

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