Não seria possível contar a história do esporte sem colocar em destaque a presença do negro. Assim como também não há maneira de apontar os dez maiores atletas de cada modalidade sem citá-los em pelo menos metade destas listas. O maior jogador de todos os tempos do futebol mundial, do basquete, do atletismo. A história de luta e superação envolve também a parte esportiva, responsável, sem dúvida alguma, por afastar qualquer ideia inaceitável e absurda de inferioridade. Pelo contrário.
Nesta quarta-feira, 20, feriado estadual pelo Dia da Consciência Negra, as reflexões em torno do tema são mais do que necessárias. E viajar pela trajetória esportiva brasileira e mundial traz o entendimento sobre o quanto é importante manter acesa a chama do combate ao preconceito.
“A presença do negro no esporte brasileiro é incontestável. Ela não só é marcante na quantidade como também na qualidade. Só no atletismo temos o Adhemar Ferreira da Silva, Joaquim Cruz, João do Pulo (foto), Ida dos Santos, Wanda dos Santos, Luciana dos Santos e muitos outros atletas só nessa modalidade. Fiz questão de citar essas três mulheres com o mesmo sobrenome para percebermos o quanto a escravidão ceifou as famílias negras que vieram para o Brasil. Tenho quase certeza que elas não são parentes”, detalha José Tadeu Costa, professor de Educação Física e membro do Centro Cultural Afro Brasileiro Ysun-Okê.
O caso citado pelo professor – que também é exemplo, ao participar da formação de inúmeras gerações de famílias friburguenses e vencer preconceitos para brilhar em salas de aulas, quadras e ginásios - mostra o quanto os sobrenomes dos negros foram ceifados no Brasil, em detrimento de outros de origem portuguesa. E essa “regra” de substituição valeu por anos, tanto para os que vinham da África quanto para os que nasciam em terras brasileiras.
“Além de dar trabalho para pronunciar o nome africano, facilitaria a comunicação para o dominador em vários aspectos. O sobrenome verdadeiro caía no esquecimento”, explica.
Mesmo em meio ao cenário desafiador, o futebol foi uma porta de entrada para os negros no meio esportivo. Ao assistirem as partidas, antes restritas à elite, e perceberem que não era difícil praticar o esporte, começam a se destacar por fatores como força, resistência e a ginga influenciada pela dança. O surgimento de clubes como Bangu (primeiro time de operários) e o Vasco da Gama abrem as portas para o indiscutível talento do negro. Um deles, Leônidas da Silva, chama a atenção de todo o Mundo na Copa do Mundo de 1938.
“No futebol nós precisamos, cada vez mais, fazer uma reflexão. Temos muitos atletas negros se destacando, seja no campo de várzea, no futebol de qualidade média ou alto nível. A presença é marcante, e não é de hoje. O negro só ficou fora do futebol naquele momento elitista, assim que ele foi trazido para o Brasil no final do século 19. Com o passar do tempo, por mais que tentassem barrar a sua participação, a ginga, a mobilidade, flexibilidade e naturais movimentos impossibilitaram essa exclusão”, destaca Tadeu.
Mesmo com o passar dos anos e toda a luta contra o preconceito, existem setores da sociedade que ainda carecem da presença do negro. No futebol, por exemplo, há apenas dois treinadores negros na Série A do Campeonato Brasileiro. “Como admitir a presença de apenas dois treinadores negros na Série A do futebol brasileiro, o Roger (Bahia) e o Marcão (Fluminense)? Era para ter muito mais, em todas as séries. Mas isso ocorre em função de uma escravidão de mais de 300 anos que deixou o negro à margem de várias atividades dentro da sociedade brasileira. Estamos vivendo um resgate histórico, e torço para que muitos outros negros assumam esses cargos”, observa Tadeu.
Apesar de algumas evoluções, quebrar alguns paradigmas criados ao longo dos anos, mesmo nos tempos atuais, é um desafio para ampliar a inserção do negro em algumas modalidades. “No basquete, vôlei, handebol e esportes individuais há a presença forte e destacada do negro. Durante anos, se falava que, pelo fato de o negro ter uma estrutura óssea muito pesada, haveria dificuldade para a prática da natação e outros esportes, o que não é verdade. A situação econômica do negro não o permitia praticar um esporte que, até há pouco tempo, era de elite, assim como o tênis, por exemplo. A partir do momento em que se abriu os clubes, o negro passou a ter uma participação maior e de muito destaque”, explica o professor.
Fora dos gramados, quadras e ambientes esportivos, a discriminação ainda é observada, embora já existam algumas leis – não apenas no âmbito do esporte – para punir e tentar coibir esse tipo de ação.
“Temos convivido com uma série de preconceitos no Brasil e em vários cantos do mundo. Presenciamos há poucas semanas, em Minas Gerais, um funcionário trabalhando no estádio e que foi agredido verbalmente por dois torcedores (fato acontecido no jogo entre Cruzeiro e Atlético Mineiro). E percebemos isso quando se faz uma pesquisa nas categorias de base, pelo Brasil afora, há muito preconceito racial. Mesmo assim há um avanço, que não tem como controlar. Percebemos dois jogadores no Mundial Sub-17, no último fim de semana, recebendo premiações de destaques, um francês e um holandês. E o futebol europeu deve muito ao negro, pois ganhou na ginga, na malemolência”, completa Tadeu.
Nelson Conceição: o primeiro goleiro negro da Seleção é friburguense
Se muitos negros escreveram e ainda escrevem capítulos importantes do esporte nacional, no âmbito municipal há alguns personagens históricos. Um deles é o friburguense Nelson Conceição, primeiro goleiro negro da Seleção Brasileira. Nascido em 12 de agosto de 1899, mudou-se ainda jovem para a então Capital Federal, Rio de Janeiro, e por lá, com apenas 15 anos de idade, começou a disputar partidas oficiais de futebol.
Nelson começou a carreira em 1915 no Paladino Football Club, e no ano seguinte, passou a defender o Engenho de Dentro Athletico Club. E foi neste segundo clube que o jogador friburguense se tornou tricampeão da Liga Suburbana (1916-1917-1918), a maior de todas as ligas do subúrbio.
Um dos clubes que abriram as portas para os negros, o Vasco da Gama seria o destino de Nelson aos 19 anos de idade. Titular da meta cruzmaltina, estreou oficialmente aos 20 anos, em 1919, na vitória por 2 a 0 sobre o Sport Club Rio de Janeiro.
Em 1922, o Vasco chegou à elite do futebol carioca, disputando pela primeira vez, no ano seguinte, a 1ª Divisão. Negros e brancos pobres que vieram de clubes do subúrbio carioca integravam a equipe campeã em 1923. Reconhecido como o melhor da posição, aos 24 anos se tornou o primeiro goleiro negro a ser campeão carioca, a defender a seleção carioca e a seleção brasileira, ao participar do Campeonato Sul-Americano, em Montevidéu, da Copa Roca, na Argentina, e da Taça Rodrigues Alves, no Paraguai, além de alguns amistosos. Nelson morreu no Rio de Janeiro, em 24 de abril de 1942, com apenas 42 anos de idade.
Cadão é exemplo de sucesso
Se na Série A do Campeonato Brasileiro há apenas Roger Machado e Marcão, na Série B1 do Carioca deste ano dois profissionais negros brilharam na área técnica e conduziram os respectivos clubes à elite do futebol estadual. Um deles é Ricardo Jerônimo, o Cadão (foto acima), ídolo do Friburguense e responsável, na função de treinador, por reconduzi-lo ao grupo dos principais times do Rio de Janeiro, conquistando ainda o título da competição.
Com 412 partidas disputadas como jogador, Cadão é também um dos maiores artilheiros da história do clube, com 41 gols marcados. Formado em educação física, assumiu o comando técnico em 2018, quando o Tricolor da Serra também fez boa campanha na segunda divisão.
O outro time que conseguiu o acesso, o América, também teve na área técnica um comandante negro: Gilney Barreto da Silva, o Ney Barreto, de 43 anos. Mantidos nos cargos, ambos tentarão, a partir de dezembro, conduzir os dois clubes à fase principal do Campeonato Carioca da Série A.
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