Arautos do Evangelho refutam denúncias, alvo de investigação do MP

Familiares também mostram confiança na ordem religiosa. Vítima fala em humilhação, racismo e lavagem cerebral
sábado, 26 de outubro de 2019
por Guilherme Alt (guilherme@avozdaserra.com.br)

No último domingo, 20, o Fantástico (TV Globo) exibiu uma reportagem, de aproximadamente 15 minutos, expondo denúncias de ex-integrantes da ordem religiosa Arautos do Evangelho. Os relatos acusam a ordem de praticar abuso sexual, violência, racismo e lavagem cerebral. Esta semana, o Ministério Público instaurou um inquérito para investigar as denúncias em Nova Friburgo.

Em função da citada reportagem exibida pela Rede Globo, o jornal A VOZ DA SERRA foi procurado por algumas famílias - que têm filhos integrantes do Arautos do Evangelho, para dar seus relatos. O padre Lourenço Ferronati concedeu uma entrevista exclusiva ao jornal refutando as denúncias. O jornal também teve acesso ao depoimento exclusivo de uma vítima que relatou com detalhes sua experiência na Ordem.

Entrevista com o padre Lourenço

A VOZ DA SERRA: Como o Arautos recebeu essas denúncias?

Padre Lourenço: Recebemos com muita tristeza e com um certo assombro, pois somos conhecidos na cidade e no Brasil. A forma como foi apresentada a matéria no Fantástico foi sensacionalista, buscando ouvir apenas uma parte. Ao mesmo tempo foi a oportunidade de muitos se manifestarem para dar apoio.

Com relação às questões de racismo, abusos, violência, é possível que essas denúncias sejam verdadeiras, já que o Ministério Público está apurando?

Denúncias são denúncias e é necessário que elas sejam acompanhadas de provas e daí a dificuldade daqueles que fazem as denúncias, porque nós temos a consciência tranquila. Entre nós não há racismo, pelo contrário, nós temos pessoas de várias raças, seja da ordem primeira, da ordem segunda. Aliás vários deles têm se indignado, mandando mensagens bastante surpresos. Nós não fazemos seleção em função de uma raça. Dizem na matéria que os Arautos são todos loiros de olhos azuis, eu mesmo não poderia ser um Arauto, então. Em relação às outras acusações nós temos fartas provas de que são calúnias de pessoas que são desafetos da instituição que se uniram a uma quadrilha e eu não vejo uma outra terminologia para isso. Essas pessoas têm atuado de uma forma pensada, orquestrada, sustentada, também, porque imagino que tenham gastos com isso e me pergunto de onde vem esse financiamento e qual a intenção de destruir uma instituição conhecida aqui em Nova Friburgo, desde a nossa fundação em 2001.

Uma de nossas fontes afirmou que em Nova Friburgo não há problemas, que esses problemas acontecem, em sua maioria, em São Paulo. A informação procede?

É necessário que ela diga quais são esses problemas, quais são essas insatisfações. Eu respondo pela atuação na cidade de Nova Friburgo, não posso falar pelas outras unidades. Eu falo, sim, pela instituição, porque nosso modo de proceder é único, a mesma atuação que realizamos aqui, realizamos em outras cidades. Me causa estranheza essa afirmação.

Qual é a metodologia do Arautos, a idade mínima para ingressar e quais são seus ensinamentos?

Para que a pessoa possa dar o passo a uma vida religiosa é necessário que ela seja maior de idade. A partir daí, ela terá condições de, voluntariamente, aderir. Nós temos um trabalho realizado com crianças, de forma cultural, extremamente conhecido em toda cidade, com autorização da Secretaria Municipal de Educação e de seus diretores. Portanto, mais uma vez, causa-nos estranheza algumas acusações dessas pessoas que se agruparam e mandam mensagens a essas escolas pressionando para que a gente pare de atuar. Nossa metodologia é fazer o bem.

Outra denúncia é a de que o Arautos promove o distanciamento da família. Como é a relação de vocês com os familiares?

A distância, por vezes, é física. Nós procuramos diminuir essa distância, seja com visitas frequentes dos pais para que conheçam as sedes, viagens com a família, uso de celulares para facilitar a comunicação. Essa acusação não procede. Por vezes, sim. Há alguns alunos que se distanciam das famílias, mas seria o caso dos familiares perguntarem os motivos. Talvez seja uma insatisfação familiar, um problema com a família, mas não com a instituição.

Famílias: “Não tivemos a oportunidade de dar os nossos testemunhos”

“Desde os nove anos ela queria ir para o Arautos do Evangelho, mas não deixamos porque não conhecia nada sobre a Ordem. Com 13 anos ela foi convidada novamente, sempre foi muito católica, muito religiosa. O chamado veio através do Arautos, quando ela estudava em uma escola aqui em São Pedro da Serra. Ela é muito feliz lá dentro, e pensamos que tenha perdido a infância por estar no Arautos. E não há nenhum problema com a comunicação. Sempre que a gente quer falar, ligamos para a sede, as irmãs atendem e chamam a Maria Clara. Em Friburgo, nós temos a plena confiança de que ela está bem, enquanto ela quiser ficar, ela vai ficar. Nada daquilo que apareceu no Fantástico é verdade. A gente não pode dizer que não aconteça nada de ruim. Nós somos humanos, mas do jeito que foi mostrado, acho que foi uma calúnia muito grande”, afirmam Valdecir da Paixão, Marilza Klein e Roberta da Paixão, pais e irmã de Maria Clara Paixão, de 17 anos (foto).

“Impossível não contar para alguém que sofreu abuso”

“Ano passado nós fizemos um passeio e fomos todos para Natal. Se fosse tudo isso que dizem, ela não teria sido autorizada a faltar aula uma semana, ir para a beira do mar, ficar com a família. Minha filha adoeceu e teve que ficar no hospital por 20 dias. Eu sou a mãe dela e fiquei com ela todos os dias. Em nenhum momento as irmãs interviram. Nós não tivemos a oportunidade de dar os nossos testemunhos. Nossa experiência é completamente diferente do que foi mostrado na reportagem. Um questionamento que eu faço é por que essas pessoas que fizeram as denúncias nunca comentaram com suas famílias ou com os superiores do Arautos, que algo os incomodava?  No mínimo estranho que a pessoa fique anos no Arautos, tenha desavenças e não exponha esses problemas, como o caso da pessoa que disse ter sofrido abuso sexual. Eu já sofri, por duas vezes, e em nenhum momento, depois disso, você consegue ser a mesma pessoa. Falo por mim, acho impossível que você não conte para seus pais, amigos ou um superior sobre um problema como esse”, questionou Maria Carolina Ouverney, mãe de Nicole Ouverney, de 14 anos, que está nos Arautos desde os 5 anos.

“A impressão é de tristeza”

“Quando os nossos filhos entraram para o Arautos, nosso casamento estava no fim e através deles nós conseguimos acertar os nossos problemas e dessa reunião tivemos mais dois filhos. Ao todo são quatro filhos. Nossa filha mora no Monte Carmelo-SP e toda vez que vamos a São Paulo nós almoçamos, jantamos, fazemos vários programas em família. Visitamos o quarto onde ela dorme, sabemos o que ela estuda, a rotina dela. É uma vida aberta. A impressão que eu tive em função daquela reportagem é de tristeza, porque eles queriam continuar, eles tiveram um maravilhamento, assim como nós tivemos ao chegar e conhecer a ordem. Eles começaram a atacar porque ficaram tristes em não poder permanecer por lá”, comentaram Aline Mozer, Flávio Mafort, pais de Jonas e Sarah Mafort que estão na sede do Arautos, em São Paulo.

“No Arautos o estudo é levado mais a sério”

“Foi uma maravilha. Eu viajei muito com eles. Sinceramente, se eu não tivesse tido a experiência no Arautos, não viajaria tanto como eu viajei. Não concordo com nada que falaram no Fantástico. Foram dois anos de uma experiência bonita. Eu nunca presenciei nada de estranho. O estudo lá é levado mais a sério, nas outras escolas o ambiente é mais leve. O costume lá é aprender e não colocar a fofoca em dia como é normal em muitos colégios”, relatou João Vitor, de 16, ex-integrante da Ordem, acompanhado por seus pais Edimar Nogueira e Ana Lúcia Souza.

Depoimento: “No início eles te tratam muito bem”

“Eu fiz parte do Arautos do Evangelho por quatro anos, morando no estado de São Paulo. No início eles te tratam super bem, mantêm relação com as famílias, tudo muito belo, justamente para conquistar as crianças e as famílias. Quando a criança passa a morar na sede o tratamento muda um pouco, e a partir daí começam os comentários sobre o seu contato com a família e como é melhor se afastar. Bom deixar claro que o meu depoimento é com relação às casas de formação que ficam em São Paulo. Em Nova Friburgo e outros lugares do Brasil, as crianças sonham em ir pra São Paulo, onde tudo acontece. É lá que eles têm contato com o João Clá, um dos fundadores do Arautos do Evangelho.

A sigla FDR significa Fonte da Minha Revolução, em que a família é apresentada como a responsável por transmitir o pecado às crianças. Quem tem muito contato com familiares, sofre bullying. Quanto menos contato (com a família) você tiver, melhor.

Racismo

No projeto Futuro e Vida eles sorteiam pessoas que vão frequentar a casa deles, mas não há sorteio. O que eles fazem é entregar uma ficha para ser preenchida com dados dos alunos e quando eles recolhem já deixam marcadas as fichas de quem eles querem chamar. O critério é a aparência. É só procurar em vídeos dos Arautos na internet que você vai perceber que não há nenhum negro nas festas e apresentações. Os negros estão na cozinha. Eles fazem parte dos Arautos, mas só trabalham na cozinha. Eles dormem em lugares separados, comem separados. Os únicos negros que vocês verão circulando são  de países africanos.

Bagar

Bagar é como se fosse o Apocalipse, que eles acreditam estar por vir e irá eliminar os pecadores. Quem são os pecadores? Todos que não fazem parte dos Arautos. Após esse castigo, vai se instaurar o que eles chamam de Reino de Maria, que será a paz na Terra, em que só os bons sobreviverão (Arautos do Evangelho). Esse é o resumo da lavagem cerebral que eles fazem com as pessoas.

Culto aos Fundadores

Há uma adoração aos fundadores do Arautos: João Clá, Plínio Corrêa de Oliveira e Lucília (mãe do Plínio) – os dois últimos já morreram. Eles beijam a cadeira em que o João Clá senta, guardam cabelos, unhas, pedaços de roupa, fazem terço com sementes de fruta que o João Clá comeu. Eu tive esse terço, eu tive essas relíquias. Quanto mais fotos e mais relíquias, é mais status que você tem lá dentro.

Abuso Psicológico

Acontece com todo mundo, tanto por lavagem cerebral quanto para cerimônias. Tem uma que eles chamam de Capítulo. Eu passei pelo Capítulo duas vezes. É uma reunião em que eu fiquei  com o rosto encostado no chão, com os braços esticados na altura do rosto, enquanto as pessoas que moravam comigo me acusavam de tudo que eu fazia de errado ou que achavam que eu fazia de errado. A pessoa não pode se defender e nem contestar. A cerimônia dura quase quatro horas e quando você se levanta, o superior da casa faz as acusações dele e depois te dá uma lista de penitências, como ser proibido de falar, fazer as refeições de joelho, rezar como se estivesse numa cruz (de joelhos, braços esticados). É um ritual agressivo, colocado como um cerimonial de purificação.

Nova Friburgo

Eu conheço o padre Lourenço e acho que é uma pessoa genuinamente boa. Tem muita gente em Friburgo que tem a melhor das intenções. As pessoas em Friburgo têm contato com uma parte boa, da Ordem, que é a parte que faz caridade e trabalho com os jovens.

Denúncias

Essas denúncias demoraram a ser divulgadas porque um dos motivos é o sigilo que as pessoas são obrigadas a manter com os rituais que acontecem lá dentro. Outro ponto é que eles naturalizam muitas coisas na sua cabeça e demora muito até perceber que aquilo não é normal. Eu só estou falando com o A VOZ DA SERRA porque vi uma matéria de um jornal de Brasília, há alguns meses, com vítimas relatando denúncias contra eles e isso me encorajou. As explicações do Arautos na matéria do Fantástico negando todas as situações de abuso, racismo, também foi um motivador para dar esse depoimento.”

O que diz a Prefeitura

A Prefeitura de Nova Friburgo esclarece que a Secretaria de Educação apenas autorizava a entrada do Arautos do Evangelho nas escolas para que se apresentassem, oferecessem seus serviços, mas tudo feito sob a supervisão da equipe escolar. Caso alguma família tivesse interesse nas atividades propostas, o contato era feito diretamente com a instituição, sem a interferência ou participação da escola ou secretaria. Como a autorização foi dada por período determinado, caso a instituição volte a solicitar entrada nas escolas para o próximo ano, a secretaria aguardará o desdobramento das denúncias. A prefeitura informou ainda que resolveu suspender as atividades do Arautos do Evangelho nas escolas até que toda investigação seja concluída.

InterTV

Em nota a InterTV esclareceu que: “A primeira reportagem que a Inter TV fez, mencionando, nominalmente, o Arautos do Evangelho, em Nova Friburgo, foi exibida no jornal de meio dia, o RJ1, em 22 de outubro de 2019. E, como sempre, procuramos ouvir, previamente, todos os lados. 

Porém, o posicionamento que recebemos do grupo católico, em questão, ao buscarmos seu representante na cidade, foi que a resposta já estaria na entrevista dada em rede nacional, no domingo. Infelizmente, não conseguimos a entrevista localmente, para abordarmos o tema com a profundidade que merece e com a transparência que entendemos salutar, mediante o horror exibido nos vídeos em poder do Ministério Público. Vídeos estes, relacionados a possíveis práticas de humilhação, assédio e tortura por parte de integrantes do grupo. 

Fica, mais uma vez, o convite ao pronunciamento dos representantes locais do Arautos do Evangelho à Inter TV. Estamos ávidos por esta oportunidade”.

Em nota divulgada nesta terça-feira, 29, a TV Globo informou que respeita todas as religiões e que apenas cumpriu seu dever de informar sobre as denúncias que existem contra os Arautos do Evangelho.  

 

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