Diante da ignorância e do persistente estigma social que os portadores do HIV/Aids ainda se deparam, muitos deles se sentem “obrigados” a manter sua condição em sigilo, temendo a inevitável rejeição de uma sociedade carente de educação e informação.
O recém-lançado filme “Bohemian Rhapsody”, sobre a vida de Freddie Mercury em seus tempos de Queen, trata a questão do vírus HIV na década de 80, quando a epidemia disseminou seu terror em toda a sua magnitude, através do contágio do líder da banda e a forma como lidou com a doença. Ao contrário do que dizem, que foi atuante na luta contra a Aids, ele mesmo declarava não querer ser “garoto-propaganda” da doença, mas um performer. Ele só tornou público ser portador da Aids um dia antes de morrer, em novembro de 1991.
De forma distinta, Magic Johnson, um dos maiores jogadores da NBA (Liga de Basquete dos EUA), líder da equipe do Los Angeles Lakers, revelou ao mundo ser portador do HIV, em 1991. De acordo com texto que publicou no The Playbook (2016), aquele dia “foi o da mudança da minha vida de uma forma que nunca esperei. (…) Minha fé me deu forças para me levantar e dizer ao mundo que havia contraído o vírus HIV”. Tornou-se, então, símbolo da luta contra a Aids: “No começo dos anos 90, saber de alguém com o vírus significava que ele não tinha muito tempo de vida pela frente. Senti que era meu dever educar o maior número de pessoas sobre a doença”. Hoje, ele cuida de suas empresas e realiza ações filantrópicas.
Cazuza, o “poeta exagerado”, contraiu o vírus ainda na década de 80 e, embora a imprensa o atormentasse com as especulações sobre sua doença, ele só foi admitir que era soropositivo em 1989, na entrevista que concedeu para a Veja, que estampou na capa a figura esquálida do artista sob o título “Cazuza – uma vítima da Aids agoniza em praça pública”. Em trecho da entrevista, publicada em 26 de abril de 1989, comentou: “Quando estava no hospital de Boston, pensei muito e concluí que ficar calado me deixava ainda mais traumatizado. Era uma situação ambígua, de esconde-esconde. Mostrar aos outros que com Aids pode-se continuar vivendo, trabalhando, produzindo, me pareceu o caminho mais certo. Agora me sinto mais aliviado”. Cazuza morreu um ano depois, em julho de 1990. Nesse mesmo ano, sua mãe, Lucinha Araújo, fundou a Sociedade Viva Cazuza, que presta assistência a crianças portadoras do vírus.
Renato Russo, líder da Legião Urbana, um dos maiores fenômenos do rock nacional dos anos 80, assumiu sua homossexualidade durante uma viagem aos Estados Unidos, onde iniciou um duradouro relacionamento com o americano Robert Scott Hickmon. Em entrevista à revista Bizz, em 2006, a artista plástica Leonice Coimbra, grande amiga do músico, revelou: “Lembro exatamente do dia em que Renato me disse que tinha o HIV. Estávamos em Brasília, em 1990. Ele foi até minha casa, abri a porta, ele me abraçou e me disse que estava com Aids. Soube desde o início, ele estava com o exame na mão. Foi um choque para ele e para qualquer pessoa, porque era como se o Renato, naquele momento, descobrisse que estava com os dias contados”. Ele faleceu em outubro de 1996, sem nunca ter assumido publicamente a doença.
O legado de Betinho
O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, fundador da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), foi um dos maiores combatentes contra a epidemia de HIV, através da articulação de suas ideias, elevando a solidariedade ao status de ação política, sobretudo no campo da Aids. Ele foi o primeiro soropositivo a comandar uma Organização no campo do HIV/Aids no Brasil.
Além de sua importante atuação em lutas políticas, ele também foi uma das primeiras pessoas no mundo a perceber a epidemia da Aids como parte de uma “violência estrutural”, um “fenômeno social e político”, uma “crise social”, o que permitiu entender a doença como uma questão de direitos humanos, cuja solidariedade possibilitaria uma resposta efetiva à epidemia. Betinho, que era hemofílico e contraiu o vírus numa transfusão de sangue, nos deixou em agosto de 1997, mas seu legado permanece vivo em nossa sociedade.
A Aids no cinema
Logo no início dos anos 90, pouco depois da avassaladora e assustadora epidemia de HIV/Aids, o início de produções cinematográficas que passaram a abordar o tema tiveram fundamental importância para atenuar os preconceitos, informar e conscientizar a população sobre a realidade da doença – isso numa época em que ela era propagada em demasia como uma “sentença de morte”, provocando um verdadeiro terror em uma população pouco informada. A lista de filmes que aborda o tema é extensa, por isso selecionamos apenas alguns bons exemplos, seguindo um critério de diversidade da abordagem.
- E a Vida Continua (And the Band Played On, 1993), dirigido por Roger Spottiwoode e produzido para a televisão, foi um dos primeiros filmes a falar da doença. Este longa-metragem de mais de duas horas de duração, baseado no livro de não-ficção mais vendido And the Band Played On: Politics, People & the AIDS Epidemic, do autor Randy Shilts, conta o surgimento da epidemia em San Francisco, Estados Unidos, e a descoberta científica do vírus HIV. Com destaque para as excepcionais atuações de Matthew Modine, Ian McKellen e Richard Gere, este é um filme imperdível para aqueles que se interessam pela descobertta da doença, pesquisas e estigmas provocados por ela.
- Filadélfia (Jonathan Demme, 1993) é de fato um filme marcante, não apenas pela comovente abordagem do assunto, como também pelas belíssimas atuações de Denzel Washington e Tom Hanks. O filme foi produzido quando o estigma sobre a doença ainda era muito contundente, numa época em que os tratamentos antirretrovirais ainda não tinham surgido com a eficiência atual. Conta a história do promissor advogado Andrew Beckett (Tom Hanks), que é demitido de um tradicional escritório de advocacia da Filadélfia (EUA), após seus superiores descobrirem que ele é portador do vírus da Aids. Neste tocante filme, vemos o preconceito contra os portadores da doença, tratando com sensibilidade a questão da homossexualidade do protagonista, numa época em que a doença recebia a alcunha de “câncer gay”.Após ser demitido, Andrew contrata os serviços de Joe Miller (Denzel Washington), justamente um advogado homofóbico, o que torna os conflitos da trama ainda mais complexos. Com o tempo, a distância entre os dois diminui e constrói-se uma espécie de cumplicidade, que emociona o público.
- Em Clube de Compras Dallas (Jean-Marc Vallée, 2014), a trama, que se passa em 1986, apresenta a quebra do preconceito que associava a doença aos homossexuais. O eletricista texano Ron Woodroof (Matthew McConaughey), que também era peão de rodeios, descobre ser portador do vírus após um acidente de trabalho. Por causa de sua homofobia, ele demorou a se dar conta do problema que tinha que enfrentar. Mas talvez não esperasse ir tão longe: ele trava uma batalha contra a indústria farmacêutica, após criar o “Clube de Compras” onde vendia drogas alternativas trazidas ilegalmente de fora do país, numa época em que os testes com o AZT ainda estavam em sua fase inicial. Ainda conta com a ótima atuação de Jared Leto (vencedor do Oscar) como a travesti Rayon, que acaba virando sócia – e amiga – de Ron.
- Kids (Larry Clark, 1995) já aborda a questão da epidemia entre jovens e adolescentes, que abusam do uso de drogas e da prática de sexo desprotegido. Filme interessante para traçarmos um paralelo com os dias atuais, que demonstram um aumento crítico de infecções por HIV entre este público.
- Trainspotting – Sem Limites (Danny Boyle, 1996) não é um filme que traz como tema principal a epidemia da Aids, mas do uso intenso de heroína em um mundo do qual se sentem excluídos. Em determinado momento, a epidemia é retratada através da contaminação de Tommy (Kevin McKidd) por meio de uso de seringa contaminada. O estigma social da doença é escancarado nas pichações feitas na parede da casa de Tommy, que encontra apenas no isolamento e no consumo de heroína sua fuga do pesadelo em que se encontra.
- Para finalizar a lista, citamos um belíssimo filme a respeito do tema: A Cura (Peter Horton, 1995), que fala da forte amizade estabelecida entre os garotos Erik (Brad Renfro) e Dexter (Joseph Mazzello), que sofre com o preconceito por ser portador do HIV. Juntos, os dois chegam a viajar de barco para New Orleans, onde supostamente um médico teria descoberto a cura para a doença. Um filme encantador, que fala da esperança, que nunca morrerá.
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