“O agressor, na maioria das vezes, é quem tem uma relação íntima com a vítima”
Se comparado com os dados de 2016, quando foram registrados 2.282 casos, notamos uma queda expressiva em relação ao ano passado. Mas, essas mudanças nem sempre significam avanços. De acordo com a delegada titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), Danielle de Barros, a diminuição de registros pode estar ligada não à queda na violência, mas sim a modificações na condução de casos.
“Muitos procedimentos não iam à frente porque não havia o mínimo probatório que os levasse a uma investigação penal. Como, por exemplo, uma ameaça sem testemunhas ou qualquer tipo de prova. É um procedimento fadado ao fracasso já que se torna apenas a palavra da vítima contra a palavra do suposto autor. Por isso, criamos um procedimento de acolhimento a vítima que não tem prova, o que chamamos de atendimento social. Nesse novo formato, orientamos a vítima para que ela possa conseguir ter provas contra o autor e assim fazer, de fato, um registro contra ele”, afirma a delegada acrescentando que “Infelizmente, essa queda no número de registros ainda não está relacionada com a diminuição da violência”.
A ameaça pode estar dentro de casa
“Toda vez que ele quer sexo e eu não quero, ele insiste e eu acabo cedendo para não ter briga. É sempre assim, principalmente quando ele bebe além do limite. Sempre há uma piada de cunho sexual que me deixa desconfortável, ele passa a mão no meu corpo mesmo quando não quero. Por diversas vezes ele já me ofendeu, chegando a me comparar com a ex. Lembro que em uma das primeiras agressões, ele jogou a panela de comida que eu estava preparando na parede, me empurrou e começou a me bater. Já fui ameaçada, ele controla todos os meus passos, faz escândalo na frente dos outros, e me diz várias vezes - em tom de brincadeira - que se apanhei foi porque fiz por merecer. Se eu me calo ou falo é como uma fagulha em um barril de pólvora. Cheguei ao ponto de sentir que realmente não faço nada direito. Que nada é o suficiente. Quando toco no assunto questionando por que ele me agrediu, ele jura que não vai fazer de novo e logo muda de assunto. Ele é gente boa com os amigos e trabalhador. Quem acreditaria em mim? O mundo não sabe que toda vez que eu saio e volto para casa, o medo está junto comigo. Eu rezo para ele ter bebido o suficiente para estar dormindo”.
Esse poderia ser apenas mais um trecho de uma história de ficção, mas é a vida real de uma das tantas mulheres que convivem com o fato de que o lugar de onde se espera mais segurança e paz é, na verdade, onde mora o caos. A leitora que enviou este relato e preferiu não se identificar engrossa a estatística que revela que a maioria dos casos de violência contra a mulher acontecem dentro de suas próprias casas.
“Na maioria dos casos de violência doméstica e familiar, está presente o álcool e/ou as drogas. A frase ‘Ele é uma pessoa ótima, mas quando bebe...’ ou ‘Ele é uma pessoa ótima, mas quando se droga…’ são as que mais ouvimos. O agressor, na maioria das vezes, é quem tem uma relação íntima com a vítima. É o pai dos filhos dela, por exemplo. O caos começa como um problema familiar e alcança a esfera penal”, afirma a delegada Danielle de Barros.
De acordo com o levantamento do ISP, ao menos 56% dos casos de violência aconteceram na residência da vítima. No caso do agressor, 42,8% eram companheiros ou ex-companheiros das vítimas e em 37,1% dos casos registrados, os autores partiram para a violência física e outros 31,5% tiveram atos de violência psicológica. Dentre os tipos de delito mais registrados pela Polícia Civil de Nova Friburgo, 602 foram de lesão corporal, 512 envolvendo ameaças e 325 casos de injúria.
Quanto ao perfil das vítimas que chegam à delegacia para relatar crimes, 69% delas são brancas, 54,1% estão entre os 30 e 59 anos e pouco mais de 56% não chegaram ao ensino médio. “Todas as faixas econômicas, sociais ou culturais estão suscetíveis a essa situação, mas podemos afirmar que a denúncia chega mais de mulheres de baixa renda. Por algum motivo, talvez cultural, percebemos que quanto mais poder aquisitivo e estudo essa vítima tem, mais vergonha ela tem de procurar a Deam”, aponta Danielle.
Ainda segundo a delegada, a violência doméstica, na maioria dos casos, se torna um ciclo. “Muitas mulheres que tem quatro ou cinco procedimentos, denuncia, pede a medida protetiva, mas perdoa o autor da violência logo em seguida. Ele então retorna ao convívio e volta a cometer os mesmos crimes. Essa é uma realidade muito triste. Nós fazemos o papel da polícia de acudir a vítima, mas não conseguimos quebrar o ciclo de violência”.
A importância da denúncia
Apesar dos números serem alarmantes, eles ainda podem estar bem longe da realidade. Isso porque, em muitos casos de violência, a denúncia não acontece, seja por falta de conhecimento, medo ou fé de que a situação pode mudar. Mas, para dar um basta à violência, a melhor opção é falar.
“A mulher precisa ter consciência de que não é normal sofrer violência. Não é porque uma avó, mãe ou qualquer outra parente já passou por isso que a pessoa deve aceitar abusos. Violência não faz parte de uma relação saudável, isso é crime, precisa ser denunciado. A vítima não é obrigada a permanecer em uma relação abusiva. Um ato de violência pode acontecer com qualquer uma, mas permanecer nessa situação é uma escolha”, afirma a delegada Danielle de Barros, acrescentando que “não é preciso ter medo de denunciar, a Deam dispõe de aparatos para atender a vítima com toda a atenção e conforto necessários. Temos medidas protetivas para manter a segurança dessas mulheres”, assegura a titular da Deam em Nova Friburgo.
Como provar
Um dos maiores dilemas de quem sofre violência, principalmente as que não geram consequências claramente visíveis, é a de como provar o abuso. Mas existem aliadas ao alcance das mãos que podem ajudar e muito na comprovação de atos de violência: as redes sociais. “Prints de WhatsApp ou mensagens no Facebook, por exemplo, já são suficientes para servir como prova de uma ameaça ou difamação. Utilizar o celular para gravar o fato também é uma forma de provar”.
Em outubro do ano passado, a atitude corajosa de uma jovem fez a diferença. Graças a um vídeo postado no Facebook, a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) começou uma investigação sobre um homem suspeito de constranger sexualmente mulheres dentro dos ônibus em Nova Friburgo. O assunto ganhou repercussão na internet, após a publicação do post de uma jovem de 18 anos no Facebook, grávida de quatro meses. Em seu perfil na rede social, a friburguense fez um desabafo sobre a situação constrangedora que passou em uma tarde de sexta-feira, 29 de setembro, dentro de um coletivo da linha que fazia o percurso Centro-Riograndina.
Junto com o texto, postado, a jovem divulgou fotos e um vídeo que mostrava a ação do suspeito. Nas imagens, gravadas pelo próprio celular, a moça aparece sentada em um dos assentos, enquanto o homem, em pé no corredor, parece esfregar seu órgão sexual no braço dela. Não demorou muito para que a atitude da jovem chamasse a atenção dos internautas. Em menos de 48 horas, o post já contava com mais de 350 comentários, 500 compartilhamentos e 700 reações de pessoas indignadas com a situação. Dentre elas, algumas mulheres que relataram ter passado pela mesma situação, com o mesmo homem.
“Só foi possível chegar a identidade do autor devido ao compartilhamento na internet de um vídeo dele praticando o ato. O homem se sentiu prejudicado pela divulgação, veio a delegacia e prestou queixa contra a menina. O que ele não esperava era que outras mulheres também relatassem casos semelhantes contra ele”, conta a delegada.
Este foi um exemplo de caso em que as redes sociais ajudaram a vítima, mas ainda assim é preciso tomar cuidado com a exposição de imagens. “O mais importante nesse caso foi a solidariedade de outras mulheres. Quem também esteve na situação de vítima ou presenciou o fato deve denunciar. A partir dessas várias informações é possível criar um conjunto de provas e vítimas suficientes para incriminar o suspeito. Caso essa jovem não tivesse o apoio dessas outras mulheres, o caso poderia ter outro fim. É preciso que todas se unam”, ressalta Danielle.
A Delegacia de Atendimento Especializado à Mulher fica na Avenida Presidente Costa e Silva, no bairro Vila Nova, no mesmo prédio da 151ª DP. As denúncias de violência também podem ser feitas através do telefone. Basta ligar para o telefone da Deam de Nova Friburgo (22) 2533-1852. Ainda é possível entrar em contato com a Central de Atendimento à Mulher (180) - serviço gratuito que funciona 24 horas por dia (inclusive fins de semana) ou pelo Disque Direitos Humanos, o Disque 100.
Dados da violência contra a mulher no Brasil
De acordo com uma pesquisa realizada pelo Datafolha, em 2016, e encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança, 503 mulheres brasileiras são vítimas de agressão física a cada hora. Entre as mulheres que sofreram violência, 52% se calaram. Apenas 11% procuraram a delegacia da mulher. Ao menos 40% das mulheres acima de 16 anos já sofreram algum tipo de assédio; 5,2 milhões também já sofreram assédio em transporte público. Mais de 20 milhões de mulheres já receberam comentários desrespeitosos nas ruas; 2,2 milhões já foi beijada ou agarrada sem consentimento. Ao menos 10% das mulheres já sofreram ameaça de violência física, 8% sofreram ofensa sexual, 4% receberam ameaça com faca ou arma de fogo, 3% (ou 1,4 milhões) de mulheres sofreram espancamento ou tentativa de estrangulamento e 1% já levou pelo menos um tiro.
delegada titular da DEAM, Danielle de Barros
Deixe o seu comentário