“O carnaval traz possibilidade do guardador de carros vir lindo e maravilhoso de mestre-sala e ser aplaudido por uma cidade inteira que não o reconhece. Os invisíveis se tornam visíveis nesse grande espetáculo popular e democrático"
AVS: O que podemos falar desses 60 anos de desfiles na Avenida Alberto Braune?
É um prazer falar de carnaval, é sempre bom revisitar esse momento da história friburguense, eu sou um curioso, um estudioso desse tema. Na década de 50, o então prefeito Dr. Feliciano Costa, que era um visionário, assim que tomou posse realizou uma de suas grandes ações que foi trazer o desfile das escolas de samba, de blocos e ranchos para a Alberto Braune. E foi uma verdadeira queda de braço. Se formos mapear a avenida nessa época, o comércio elitista ficava entre a Praça Dermeval Barbosa e a Rua Oliveira Botelho, e o comércio mais popular ficava no sentido da antiga estação do trem, na Rua Moisés Amélio. Trazer esses populares, como eram chamados, e suas agremiações para desfilar na rua onde a aristocracia criava essa diferença de castas sociais, foi uma verdadeira revolução.
Onde era o desfile antigamente e como foi essa resistência?
Os desfiles aconteciam na Avenida Galdino do Valle, entre o Clube de Xadrez e a Ponte Branca. A localidade era muito em função da primeira escola de samba criada em Friburgo que era a Fluminense Azul e Branca, hoje Alunos do Samba, que funcionava onde hoje está o Teatro Municipal. Importante dizer que ela é oriunda de um time de futebol que era o Fluminense. Quando a feira livre se transferiu para onde eram realizados os ensaios da Fluminense, a escola se mudou para o Beco da Sofia, atrás da prefeitura e depois na Praça, no antigo prédio da Arena, ao lado do Ienf. Quando surgiram a Vilage e a Unidos da Saudade, os desfiles foram transferidos para as alamedas da Praça Getúlio Vargas. Isso aconteceu até 1957, quando o Feliciano Costa levou o desfile para a Avenida Alberto Braune. E foi um escândalo.
Na época, principalmente aqui em Friburgo, o carnaval era considerado uma festa do pobre?
Sim. Era um “evento rasteiro”, digamos assim, de trabalhadores, negros, pobres, que tinham essa paixão por samba e carnaval. Isso incomodou o empresariado, houve uma resistência muito grande da vinda da festa para a avenida, mas o samba ganhou. E é muito interessante porque essa vitória teve muita influência de algumas famílias de imigrantes, principalmente libaneses, na construção dessas escolas de samba.
Que famílias de imigrantes fizeram a diferença no carnaval friburguense?
A família Gastin, uma das fundadoras da Vilage do Samba, e a família Milled, o Tufik e a esposa Hilda abraçaram a causa da Vilage.
O surgimento das quatro escolas de samba tem uma característica em comum?
Analisando mais a miúde, a gente vê que as escolas de samba são organizações populares, mas que tem em seu nascedouro a necessidade de ocupar os espaços urbanos, de vir mostrar o seu trabalho na rua. Em Friburgo, a Alunos do Samba surgiu aos pés da fábrica Filó, a Vilage do Samba muito próximo à fábrica Haga. Já a Ypu acabou por ganhar a Unidos da Saudade e a Império de Olaria e a Unidos do Terreirão se formaram no bairro que abriga a Fábrica de Rendas Arp, formando um quadrilátero na cidade. É muito interessante porque a gente fica refletindo sobre a organização das recreativas operárias das fábricas, que era uma questão de honra para esses industriais estrangeiros, ter suas famílias frequentando essas recreativas no final de semana, com a proximidade com a organização das escolas de samba. Era o emprego, o lazer e a paixão que é o carnaval.
Os desfiles na avenida, de certo modo, enfraqueceram os bailes de gala da aristocracia friburguense e deram nova cara ao carnaval da cidade?
Os bailes nos clubes eram um apartheid social. Os operários iam para suas recreativas enquanto os ricos iam para os clubes sociais (Clube de Xadrez, Sociedade Esportiva Friburguense e Country Clube); os pobres nas ruas e as famílias protegidas dentro dos clubes. Na década de 1970, a vinda de jovens médicos do Rio de Janeiro para trabalhar na cidade, e que tinham paixão pelo samba e que eram compositores, contribuiu muito para o crescimento das escolas. Eles começaram a compor sambas, por exemplo, para a Unidos da Saudade. E o que acontece? Essas famílias saem dos clubes e começam a frequentar as escolas de samba. O aristocrata entra para o samba. E nesse momento ocorre algo curioso: eles não querem mais chegar nos bailes com as fantasias tradicionais, como havaiana, dominó... eles passam a frequentar os bailes usando as fantasias com as quais desfilam nas escolas. E com isso há um enfraquecimento dos bailes. O Brasil passava por uma transformação, Friburgo nos anos 80, com a queda das indústrias cria novos padrões sociais, novas formas de olhar a cidade e aí o carnaval da Alberto Braune ganha dos clubes sociais.
O carnaval em que todos estão em pé de igualdade, principalmente social?
O carnaval é sobretudo uma ocupação do espaço urbano. Existe uma troca de valores. O carnaval traz em si algumas coisas que a gente precisa refletir, porque não é só a bagunça, não é só o barulho, é a possibilidade do cara que é guardador de carros, por exemplo, vir lindo e maravilhoso, vestido de mestre-sala e ser aplaudido por toda uma cidade que não o reconhece. Os invisíveis se tornam visíveis nesse grande espetáculo popular e democrático.
Se hoje os desfiles fossem retirados da Alberto Braune para outro local fora do Centro, será que o povo iria prestigiar o evento?
Antes de tudo a gente precisa dar espaço para que os representantes das agremiações dessas escolas de samba possam sentar e discutir essas mudanças. Não cabe ao poder público realizar essas mudanças, até porque o carnaval não é uma festa que o poder público oferece ao povo. É uma festa que o povo oferece ao povo, a ele mesmo. Essa é uma frase do Goethe, quando viu esse evento e ficou estupefato com essa festa popular. Para realizar mudanças no carnaval, primeiro, tem que ouvir os representantes das escolas de samba. Algumas cidades construíram um sambódromo e tiraram os desfiles do Centro, o coração da cidade. Em alguns lugares não deu certo. Temos que pensar que tem que existir uma igualdade de proximidade das escolas com os espaços que serão ocupados. Hoje, a Alberto Braune, a meu ver, é impraticável para os desfiles, por conta dos cabos de alta tensão instalados nos anos 90, e é por isso que não tem como ter arquibancada na avenida, o piso é desfavorável para o desfile. Todo ano é preciso fazer uma licitação para som. As pessoas que podem repensar o carnaval friburguense são as pessoas das escolas de samba, é o povo do samba.
David Massena
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