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Colégio Anchieta: fé e ciência - Parte 4
Ter um filho padre na família era o desejo de todas as mães. Por isso, normalmente um deles era escolhido e possivelmente, o que estivesse mais próximo da vocação religiosa. Foi assim com Cícero Monnerat. Sua mãe o escolheu para ingressar na vida eclesiástica. No entanto, não seguiu depois de seus estudos no Colégio Anchieta, a vida monástica. Foi até o seu falecimento professor nesse estabelecimento de ensino.
Cícero Monnerat nos legou um interessante depoimento de como era o estado psicológico de um menino, escolhido pela mãe, para ingressar na carreira religiosa: “Dia 7 de fevereiro de 1938. Garoto tímido, cabrito selvagem, cheirando a capim gordura, com embrulho de roupas raquíticas e escassas, beijando a minha mãe e minhas irmãs, parto, em companhia de meu pai, em busca de Friburgo. O trem das 11h apitando fino e cuspindo vapor arranca em marcha balançante. Debruço na janela de madeira, a cabeça apoiada nas duas mãos cruzadas, estico os olhos saudosos para os conhecidos ficantes, para as ruas e ladeiras da minha Bom Jardim. O trem avança bamboleante, saculejante e sufocando minha dor dolorida, nos estridentes apitos nas curvas da ferrovia. Ferrovia-cotia. Cotia me arrepia, nas saudades das matas. Para trás o mundo conhecido para a descoberta do desconhecido chego a cidade grande. Meus passos perseguem os de meu pai pelas ruas afora. Encontro-me diante do portão de entrada. A ladeira de chão enfeitadas de jardins e jaqueiras. No topo uma fileira de palmeiras imperiais me prestam continência. À minha frente o espantoso, o lendário, o amarelo chateau! A porta range mansa ao toque da campainha. Um vulto de aspecto polido me reverencia dentro de sua roupa preta. Ele e meu pai trocam palavras curtas. Breves mesmo. Recebo um beijo de papai que bate em retirada escada abaixo. Acompanho do gogó apertado sua calvície desaparecer na ladeira. Lá se vai o meu último pedaço de Bom Jardim. Caminho por um corredor de paredes grossas e altas. No fundo a imagem de um santo com uma luzinha acesa. Subo a escada. Outro corredor. Uma porta. Uma tabuleta: Padre Reitor. Padre Piet dentro da sala me recebe jesuiticamente, cortês, sem estardalhaço. O prédio piramidal, o imprevisto, estão me esmagando. Sou apresentado, recebo o anjo da guarda. Recebo o número 114, vou me engajando sendo instruído, sendo orientado. Só posso andar com dois ou mais colegas. Jamais com um só. Mãos no bolso da calça. Um horror! Lugar fixo na fila, na sala, na capela, no dormitório. Silêncio em tudo. A roupa de Bom Jardim cai no esquecimento. Vestido de cáqui, “dolman” com botões pretos, bonezinho na cabeça. Primeiro dia. Primeira noite. O dormitório me engole em seu tamanho. A cama de ferro, nela um suporte com bacia de ágata para lavar o rosto. Um armariozinho na cabeceira, o urinol debaixo da cama, mas só pode usar depois de apagadas as luzes. Indecente tirar a cueca para dormir! A lampadazinha roxa no teto bem pequenina dá cores de mortalha ao salão. Silêncio noturno profundo. Passadas compassadas do padre vigiando nosso sono. Cedo, a campainha acorda nosso sono. Arrumar a cama, fazer a higiene e fila para a capela. (...) Refeições, estudos, recreios, aulas e mais estudos amarram o dia. (...) Tinha que buscar a perfeição, a santidade. Tinha que pisar no gogó do diabo, seríamos sacerdos in... A minha magreza esticava em comprimento e eu engordava tomando os pratos e pratos de cultura. No refeitório o prato tinha que ser aceito com delícia. “Seu padre não suporto jiló!”. “Coma, meu filho, com o espírito de sacrifício!”. Manteiga? Só nas férias! Férias de junho, fazenda do dr. Bandeira e da carinhosa Dona Zezé. Passeios, banhos de piscina, muita pescaria, jogos, “passarinhos vocês não matem”, dizia o dr. Bandeira. Conversa com o tio Pedro, velhinho preto de cabelos brancos, ex-escravo, sempre sentado na escada de pedra de sua humilde casa, contando fatos fantásticos que botava nossos olhos grandes e admirados. (...) Anchieta, um ambiente de formação integral. Física, moral, intelectual e religiosa. O colégio virou meu novo mundo. As saudades sempre espetavam. Da sala de estudo, à tardinha chegava o apito do trem misto que me avisava que partia para Bom Jardim, o jardim de minha infância. Minhas raízes fincaram fundo no jardim dos jesuítas. Parece que a vontade de minha mãe vai realizar-se. Um filho que de cima do altar abençoasse a todos. O garoto tímido continuava, o cabrito selvagem fugia. (...) O tempo trotava entre os estudos, rezas, esportes e alimentação. O mundo que eu esquecera já botava uma pontinha de broto. Da janela de estudos eu apreciava no beiral o amor dos pardais. O mesmo trem, na mesma hora, o mesmo apito em direção a minha Bom Jardim. (...) Minha tia botara meu nome em santinhos, distribuindo entre parentes, antevendo e antegozando minha glória! Ad Maiorem Dei Gloriam. Ele não me selecionou para o sacerdócio. Minha messe seria outra. Dia 3 de fevereiro de 1943. Padre Vieira me acompanha até a porta principal profetizando “Cícero, Deus o quer para outra missão!” E a porta grande, estranha, que se abrira em 1938, fecha-se agora, pela última vez, para o ex-apóstolo número 114. Desço a ladeira, estico as pernas pelas ruas. Outra vez o trem da Leopoldina. Jamais ouvirei da sala de estudos o seu apito. Novamente debruçado na janela, lá de baixo, olhos para cima, as palmeira impassíveis. Suas folhas pairavam muito acima do meu drama. O amarelo chateau, estático, com a saída de um soldado, não se perde a guerra. Minha mãe perdera o padre...”
Continua na próxima quinta-feira, 29.
Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
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