A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras”
Tente pensar em alguma coisa que você não consiga traduzir em linguagem verbal. Conseguiu? Difícil, né?!
A língua materna que adquirimos nos primeiros anos de vida, seu vocabulário e sua estrutura não chegam aos nossos ouvidos a partir de dicionários, gramáticas ou momentos formais de aprendizagem. Ela nos chega através de enunciações concretas que ouvimos e reproduzimos, ou seja, ela vincula intimamente nossa experiência linguística à nossa consciência. Linguagem verbal e pensamento estão sempre enamorados.
Agora, pense no significado da palavra “governante”. Aquele que é legalmente instituído para governar um estado. E o que vem a sua cabeça quando pensa na palavra “governanta”? Mulher que orienta empregados numa casa. Fizemos uma oposição de gênero ou de lugares sociais?
É categorizado nos manuais de gramática que mulher é o feminino de homem. Porém, o feminino de marido também é mulher. A palavra marido refere-se a um papel social e a palavra mulher engloba todo o ser humano do sexo feminino. São as palavras estabelecendo relações de empoderamento pelo casamento.
A flexão de gênero da língua portuguesa é feita de maneira muito incoerente e confusa. Isso porque associa o gênero ao sexo. Ora, se o gênero abrange todos os nomes da língua portuguesa, por que fazê-lo, visto que objetos possuem gênero, mas não possuem sexo?
Pulga atrás da sua orelha? Sei...
Apropriar-se de uma linguagem e seu modo de nomear o mundo traz consigo padronizações difundidas no cotidiano, subjetividade e ideologia, situações, posições sociais e juízos de valor.
Aprender a falar é moldar a consciência e o pensamento. A língua integra-se à vida através de enunciados que refletem e são refletidos em padrões de comportamento e contextos sócio-históricos. É uma forma sutil de difusão da discriminação de gênero. Sua organização e estruturação estão cheias de exemplos. Em Latim, todos os nomes eram declináveis, ou seja, recebiam desinências a depender de sua função na frase. O paradigma das declinações se dava, em sua maioria, separando palavras masculinas, femininas e neutras. Estabelecia-se essa ordem de importância: primeiro os homens, depois as mulheres e, por fim, as coisas. E, enquadravam-se nos neutros (ou seja, nas coisas) pessoas sem personalidade jurídica — escravos e prostitutas. Eis a língua discriminando e desempoderando em sutilezas de cunho gramatical.
Em língua portuguesa fazemos a flexão de gênero, principalmente, com a oposição o/a. De forma que o uso do masculino é generalizador e o feminino só abrange as mulheres. Quando dizemos Os brasileiros têm lutado contra as formas estabelecidas de discriminação, generalizamos o sujeito da frase de forma que ele abranja homens e mulheres, porém a palavra homens é masculina e traz consigo essa marca de gênero, que associada ao sexo, privilegia um em detrimento do outro. Mais um uso gramatical se fazendo com clara intenção social e política.
Também as artes que utilizam a língua como instrumento, como teatro e literatura, são sistemas complexos que refletem de modo imediato e preciso os padrões estabelecidos. A literatura, por sua vez, como se perpetua no tempo, dado seu registro em livros e ensino nas escolas, reproduz com muita eficácia padrões e estereótipos e é, em sua maioria, um registro da ótica masculina.
Na Roma Antiga, existia somente uma mulher poeta. Todos os demais eram homens. No teatro, somente homens interpretavam. Eles escreviam e interpretavam as personagens, fossem homens ou mulheres. A identificação por parte do público se fazia através de máscaras, geralmente de madeira ou couro, que cobriam inteiramente o rosto do ator.
Roland Barthes, "Fragmentos de um discurso amoroso"
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