Colunas
Camarões graúdos
- Aquele desgraçado tem que morrer! - dizia a mulher, empapada de suor. O vestido de Varejão das Fábricas já era; o cheiro de suor e de sangue nunca mais sairia dali. O policial, na tabuinha da beirada do plantão, foi chamado. Deu tempo nem de botar o celular no bolso.
Dona Carmen, sentada no canto do quarto, tinha nas mãos os restos mortais de um dos porquinhos favoritos da coleção do marido, Arnaldo. Uma cerâmica caríssima que era quase um símbolo de desrespeito: um buda, mas com cara de porco - um porco todo se querendo. Ela quem havia dado a ele de presente, dividiu esse cofrinho em 6 vezes no cartão. Nele, o casal guardava notas de 50.
Pensando bem, a maior parte da coleção de cofrinhos era dela, embora a obsessão fosse dele. Ela deu vazão àquilo que o consolou, por assim dizer, quando o pai falecera, há dois anos. A depressão estava tomando aquela casa por completo. Até banho ela deu nele, na cama, porque por algumas vezes ele se recusava a levantar. Até que, numa das poucas visitas à mãe viúva, Arnaldo recebeu uma sacola cheia de notas emboladas e moedinhas. O pai tinha cismado que iria atravessar o país de moto e voltar a Juazeiro, sua terra natal, e para financiar a viagem começou a juntar dinheiro em porquinhos. A mãe deu o dinheiro para o filho e o filho tomou o sonho do pai para si.
Depois de um tempo, com a promoção do cargo na Prefeitura, dona Carmen começou a receber mais um pouquinho. Comprava porquinhos caros e lhe dava. Tudo em nome da viagem do pai. Ela até contava para os amigos, rindo, uma crônica de Veríssimo sobre uma dona de casa que gostava de receber caixinhas de presente e depois alguém descobria que cada caixinha tinha um pedaço do marido dentro. Era sempre o ponto alto das noites.
Ela incentivava. "Traz um porquinho lá da sua viagem pra França, Alzira. Traz um cofrinho pro Arnaldo lá da Bahia, seu Percival." Com a promessa, obviamente, de que não cortaria o Arnaldo em pedacinhos. E ela não só comprava e incentivava a compra dos cofrinhos como também os enchia, um a um, moedas de 0,25, um real, notas de 20, as notas de 50 dentro do porco-Buda. Claro que os porquinhos já tinham de sobra o dinheiro viagem para Juazeiro. Era muito porco e muito dinheiro dentro de porco, tinha até um porco vestido de Michael Jackson recheado pela metade com modestas notas de 100. Ela alimentava o "juntar" de dinheiro porque quando ele fizesse a tal viagem, talvez a saudade o matasse de vez, pois sua aliança com o pai iria acabar. E, assim, adiava a dita-cuja.
Mas chegaram as eleições e com elas, o novo prefeito. Acabou a boa vida da porcalhada. O dinheiro já não sobrava para encher os porquinhos: faltava até. Tanto que, em dias mais duros, em que a grana realmente não fechava o mês, eles olhavam, olhinhos compridos, todos aqueles pururuquinhas gordos. Mas logo voltavam à si. "Aquilo ali é o sonho do seu Vicente, Arnaldo, realiza o sonho do teu pai".
Eles estavam completamente sem dinheiro, com tanto dinheiro dentro de casa. Ela não tomava os remédios de pressão há quase quinze dias. Pobreza que só, os dois. Ele, na empresa de contabilidade, ela, na gerência de um departamento mequetrefe da administração municipal. Nenhum assalariado ganhava bem naquela cidade.
Mas, em novembro, enfim, uma boa notícia. Salário maior, plano de saúde, plano funeral: nem ela acreditou que conseguiu outro emprego. Queria logo contar, mas Arnaldo estava no trabalho. E ainda eram quatro e vinte e cinco. Sem nem pensar muito, feliz pela novidade, pegou os cento e poucos que tinha na conta, comprou um espartilho rosa, comprou camarões graúdos e uma garrafa de champanhe de mais de vinte reais. Foi pra casa de táxi. Ia esperar linda e cheirosa o amor da sua vida, com a notícia de que os tempos de penúria iam acabar.
Da sala mesmo ela percebeu o que estava acontecendo lá dentro. Tinha um par de salto alto em cima do sofá. Deixou a chave na mesinha, ouvindo os gemidos. Entrou pelo corredor como quem prepara a seringa da própria eutanásia.
Era o Arnaldo com a vizinha, Marilda. De quatro. Usando o travesseiro dela. Dando chineladinhas na Marilda usando a Ipanema dela. Dela. Rosa. Da cor do espartilho. Ela voltou lentamente, quando viu as cervejas artesanais na mesinha de cabeceira. Arnaldo não tem esse dinheiro todo. Marilda muito menos, que ainda ontem tinham cortado a luz dela.
Como num filme, desceu as escadinhas para o porão. Os porquinhos, pelo amor de Deus, que todos estivessem lá. Mas não estavam. Ele quebrou logo o porco-Buda. Bem no fundo, apenas o possível para que saíssem umas notas. Mas dava pra ver a cerâmica quebrada. Como o coração dela.
Daí em diante as cenas se misturaram na cabeça. Marilda de quatro. O leite comprado fiado. O pudim que ficou na prateleira do mercado, apesar da insistência do filho. O porco caríssimo chegando pelo correio. Parcelado em seis vezes. Arnaldo tomando banho na cama, porque se recusava a levantar. Marilda de quatro.
Toda a vizinhança ouviu os gritos, ao mesmo tempo em que uma Marilda pálida e esbaforida saía da casa aos pulos, exibindo seus pelos pubianos de jovem senhora por baixo dos lençóis estampados de dona Carmem. Arnaldo gritava, a mulher mais ainda. Chamaram a polícia.
Sargento Oliveira nem saiu do plantão. Ocorrência na Olavo Bilac, 104. Mulher feriu gravemente o marido e tentou... bem, tentou capá-lo. Oliveira se compadeceu. E correu, claro, não deu tempo nem de guardar o celular no bolso.
A cena era grotesca, mas o cabra ia sobreviver. E sem sequelas, por assim dizer. Apenas um corte superficial. Só mais uma cena banal de ciúme cotidiano. Levaram o embasbacado Arnaldo para o hospital, enquanto uma Carmem esquálida agarrada a um cofrinho se encolhia no chão do quarto. - Aquele desgraçado merece morrer, seu guarda, um homem desse tem que morrer.
Sargento Oliveira caminhava pelo quarto, tentando entender a cena, pisando sobre cacos de cerâmicas e dinheiros espalhados pelo chão. Na prateleira da TV um porta-retrato, com a foto da família, onde a mãe de Arnaldo se agarrava a um seu Vicente ainda cheio de saúde.
Uma pena que agora ele esteja rolando de vergonha num caixão, frio e duro como os camarões graúdos que nem chegaram a sair da sacola.
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
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