Em 1999, o designer austríaco-brasileiro Hans Donner — uma das figuras de alto escalão da Rede Globo — desenhou um modelo de relógio que tomaria praças de 28 cidades brasileiras ilustrando a contagem regressiva para o dia 22 de abril de 2000: o dia em que o Brasil completaria 500 anos de “descobrimento”. Um “mimo” da emissora para uma data que, a rigor, marca o extermínio sumário das nossas raízes; a comemoração que aprendemos na escola é baseada apenas na ótica etnocêntrica do europeu — o moderno — em detrimento do índio, que era apenas “o outro”, a civilização atrasada.
A história oficial brasileira é contada pelos vencedores, nunca pelos que são derrotados. Os nomes dos “heróis” pátrios são geralmente associados a figuras da classe poderosa, dominante. Seus feitos, quase sempre, não refletem a verdadeira realidade do povo brasileiro. Neste ponto, o próprio descobrimento pode ser considerado uma “farsa”, tanto por não haver sentido em celebrar a morte de quatro a seis milhões de pessoas que aqui estavam vivendo com suas culturas, religiões, com mais de 2.200 línguas diferentes (segundo o historiador Oscar Beozzo), tanto por outras navegações já terem chegado por essas bandas alguns anos antes — algo que quase nunca é citado na educação básica. Para falar um pouco mais sobre a história do Brasil e seus acontecimentos velados, convidamos o professor Pedro Monnerat, que assina o artigo abaixo.
A história ao avesso
O poeta alemão Bertold Brecht, no início do século passado, perguntava em um de seus mais famosos trabalhos: “Quem construiu a Tebas das Sete Portas? Nos livros constam nomes de reis. Foram eles que carregaram as rochas?”. A referência à mística cidade grega da Antiguidade nos traz uma importante reflexão sobre o estudo da História: quem a escreve e como a escreve, afinal?
A historiografia oficial de diversos eventos, em geral, registra grandes feitos de grandes nomes, mas, adaptando a pergunta de Brecht, terão sido mesmo eles, e só eles, que transformaram suas sociedades? E será que tais feitos ocorreram como de fato a História oficial nos apresenta? Quantos anônimos não construíram também esse passado? Não seria a História fruto de uma construção coletiva que, mesmo enriquecida ou empobrecida por grandes indivíduos, tem em seus autores todo um conjunto social muito mais amplo e dinâmico do que nos apresentam seus registros tradicionais?
Outro pensador do século passado, George Orwell, afirmava: “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”, ideia que, somada às tantas perguntas anteriores, nos convida a questionar inúmeros dos eventos históricos que nos rondam, trazendo à tona a ideia de que, em geral, a História com a qual nos deparamos é reproduzida pelos “vencedores”, aqueles que, depois do ocorrido, põem-se no papel de escritores para controlar o passado, transformando-o numa importante ferramenta de domínio social, cultural e simbólico.
O Brasil talvez seja um dos mais ricos exemplos dessa historiografia. Diversos dos mais importantes acontecimentos registrados em nossos livros trazem uma versão romantizada de eventos dramáticos, os quais perderam parte de sua complexidade conforme seus autores — posteriormente — maquiaram e perfumaram a realidade passada.
Quando, em 1500, a esquadra de Pedro Álvares Cabral atracou no Nordeste de um paraíso tropical, ele inaugurava uma missão civilizatória e de superexploração econômica que duraria mais três séculos nos quais os portugueses moldariam sua colônia de acordo com suas necessidades e punham em prática uma dinâmica nada inclusiva. São diversas as figuras de origem portuguesa que permeiam nossas lembranças desse tempo, mas de quantos índios nos recordamos? Sabemos quem “descobriu” o Brasil do ponto de vista europeu, mas quantos de nós conhecem os costumes daquela tribo que um belo dia se deparou com navios e homens brancos de barba? A própria figura do índio ainda é estereotipada, e seu extermínio físico e cultural é naturalizado mediante a construção de uma sociedade brasileira com contornos europeus que se impôs sobre as tradições e vidas que aqui já estavam desde tempos remotos.
A população negra, ainda hoje vítima majoritária das desigualdades sociais, tem nos seus antepassados escravizados a raiz de diversos dos problemas ainda hoje enfrentados. O racismo e a demonização de parte considerável da cultura africana são apenas duas vertentes de uma dívida histórica que não será paga tão cedo. Pior: em muitos locais, como na própria cidade de Nova Friburgo, são constantes as tentativas de se apagar a existência de tais cativos, o que tem por intuito o desejo de construção de um passado harmônico e sem contradições, algo que passa muito longe da realidade.
Muitas das ilusões e falácias históricas do período colonial não se encerraram com a chamada “Independência” do Brasil. Em 1822, o grito de Dom Pedro, na contramão do que acontecera em quase todos os países latinoamericanos, não encerrou a monarquia no país e não o pôs fim à escravidão. Sem contar o fato de o novo país já nascer endividado, posto que precisou pagar uma indenização a quem lhe explorava há 322 anos e, para tanto, obteve empréstimos junto à Inglaterra, evidenciando uma dependência econômica que inaugurava a dívida externa ainda hoje existente.
Menos de um século depois, ao ser proclamada a República brasileira, ainda que algumas novidades tenham se apresentado, as permanências foram a grande marca do processo. O movimento liderado por militares insatisfeitos foi uma típica quartelada, um golpe que pôs de lado um imperador, Dom Pedro II, que já não mais atendia satisfatoriamente os anseios das Forças Armadas e da elite rural, em parte insatisfeita com a concentração de poderes nas mãos do monarca, em parte discordando do processo que culminara com o fim da escravidão no país. Os benefícios da República que surgia podem ser lembrados, mas a permanência das desigualdades sociais e econômicas no país foi evidente, o que se explica pela não participação do povo como agente principal na proclamação no novo governo. Como relatou o jornalista Arístides Lobo à época, a população assistiu ao nascimento da República totalmente “bestializada”, alguns chegaram a achar que se tratava de uma parada militar.
Até 1964, outros episódios, por vezes, são convenientemente esquecidos por setores da História “vista de cima”: o quase apoio de Getúlio Vargas ao Eixo nazifascista na Segunda Guerra e sua responsabilidade na entrega de Olga Benário aos campos de concentração de Hitler são exemplos. Mas o ano do golpe militar merece especial destaque: em 1º de abril (e não 31 de março), as Forças Armadas, apoiadas por setores da sociedade civil, derrubaram o presidente João Goulart, rasgando a Constituição da época e inaugurando um período de 21 anos cujas monstruosidades jamais justificarão qualquer progresso que tenha havido. Por muito tempo o golpe liderado pelos militares foi tratado como Revolução, o que se contradiz em si mesmo na medida em que a derrubada de Jango tinha como principal argumento evitar transformações sociais mais profundas que tinham sido prometidas, as chamadas Reformas de Base, que visavam beneficiar principalmente as camadas populares do país. Felizmente, ao menos nesse aspecto, prevalece na História oficial a noção de que o golpe não foi nada revolucionário, e sim ultraconservador.
Chegando ao fim a Ditadura Militar, a participação popular novamente foi incapaz de atingir seus objetivos por completo. As Diretas Já contribuíram, assim como tantos outros que lutaram desde 64, para o fim do regime, mas fracassaram em promover as eleições diretas para presidente. Ademais, a própria transição do período diratorial para o período democrático foi encabeçado por vários dos que haviam apoiado e construído o governo anterior, levando diversas dessas figuras a se manterem (até hoje inclusive) em cargos eletivos de grande importância, o que denota, mais uma vez, em nossa história, que as transformações radicais de que tanto precisamos passaram longe de mais esse importante episódio. Uma mudança levada adiante por quem já estava no poder, evidentemente, tende a ser mais limitada do que o necessário, ainda que importante.
Finalmente, nos dias atuais, cabe a pergunta do que dirão os historiadores que no futuro decidirem contar a efervescência política de hoje. Evidentemente, o exercício de agora é especulativo e pode, como tudo que é humano, sofrer mutações, mas, seguindo a linha do que se observa na historiografica tradicional, provavelmente veremos um destaque para a participação popular no processo de impeachment ou não de Dilma Roussef. Isso, como tudo mais, deve ser problematizado ao extremo, uma vez que, mesmo sem desconsiderar as mobilizações de ambos os lados, existe uma linha de condução do processo que parece estar distante das ruas. A impressão majoritária demonstra que, para muito além dos anseios do povo, a crise política se define nos bastidores, entre negociatas e alianças estabelecidas nas mais altas esferas do poder, onde a influência popular é absolutamente restrita.
Justamente por tal restrição, o jogo pode virar a qualquer instante na medida em que acordos se estabelecem e políticos mudam ou não de lado. Certo mesmo é que a população, ainda que parcialmente mobilizada, e integralmente atingida pelo processo, torna-se plateia de um espetáculo que ela própria não direciona, ficando refém de seus representantes, os quais não necessariamente agem em conformidade ao seu representado. Qualquer que seja o resultado dessa luta, quando, futuramente, os livros disserem que o povo foi à luta, caberá uma vez mais a pergunta: fomos nós mesmos que dirigimos o processo?
Isso tudo, claro, é um exercício de reflexão, uma vez que a ciência histórica não se dedica a trabalhar com hipóteses ou projeções, mas que se registre desde já: será necessário questionar tudo o que nos for apresentado, levando em consideração quem escreveu e quem contou a história do nosso tempo, sem deixar de resgatar também algumas das construções que nos trouxeram, ao longo dos séculos, àquele contexto.
Assim como Brecht, devemos questionar quem nos representa nos livros de História, e assim como Orwell, devemos compreender que essa pessoa ou esse grupo não apenas detém poder sobre o que se passa, como também se dedica a permanecer ali. Aos historiadores cabe o papel de separar a história e estórias, e buscar, de dentro pra fora, de baixo pra cima, reverter qualquer injustiça ou inverdade que doutrine quem, mais adiante, contará os fatos de seu tempo. A História é justa, mas também é um espaço de disputa, e se torna a cada dia mais necessário dominá-la, afinal, como já diz a formulação clássica, “um povo que não conhece sua História está condenado a repeti-la”. Que assim não seja!
Pedro Monnerat é formado em História pela Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia
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