Joelma

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Conheci Joelma num ponto de ônibus, chovendo, lá pelos anos 90, quando eu ainda colecionava tazos e figurinhas dos Mamonas Assassinas. Eu era uma jovem artistinha de teatro mambembe cheia de futuro pelas costas e fui apresentar uma peça de Natal que já nem lembro se eu era Mãe de Deus ou Madalena e repito isso vida afora. Tenho sido bastante Madalena mas graças a Deus ninguém assiste e quando sou Nossa Senhora acham graça. Fato é que depois da peça, ao ir embora, conheci Joelma, 17 anos, poliomielite.

Tive pena de Joelma que mancava e falava arrastado, porque ela era uma mente ágil num corpo debilitado, enquanto eu, alta e esguia, espalhava charme magro pelas ruas da cidade. Joelma era uma menina presa atrás do estigma de aleijada, a carregar suas correntes, ganhando o lugar de honra no ônibus. Mas Joelma não andava de ônibus como eu.

No ponto de ônibus Joelma, na verdade, esperava o Roberto, 42, motorista particular da família dela. Joelma, rica, fazia francês, jantava com o prefeito e vestia Dolce, cheirava a Dolce. E eu que achava que gente de doença cheirava esquisito. E quando eu pensava no prato de comida parco que me esperava em casa eu já não tinha pena de Joelma. Pensava na minha geladeira aleijada, nas correntes que eu arrastava quando o caderninho não era aceito na padaria. Joelma se arrastava mas não conhecia a vida racionada. Eu andava ereta tal Homo erectus mas muita vez abaixei a cabeça na frente do mercado fiado.

Tudo isso eu pensava naquele dia de chuva nos anos 90, quando eu era Nossa Senhora e Madalena ao mesmo. Eu tive muitas penas nesse dia, e não sei por que. Talvez porque foi o primeiro da minha vida em que eu reconheci, ao mesmo tempo, a importância da saúde e o valor do dinheiro. De algum jeito, depois que cresci, percebi o quanto superficiais são as impressões que temos. Para Joelma eu não passava de criança pobre; ela, para mim, não passava de pobre criança. E nós duas nos enganamos.

Ao partir Joelma na sua Mercedes prateada, pude ver ao longe Benedita, idade desconhecida, mendiga, a se arrastar na chuva entre as esmolas e as migalhas. E pensei que a palavra aleijada deveria sair de todos os dicionários. A verdade é que ninguém de nós anda direito.

TAGS:

Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.