Colunas
Deboísta, dadaísta e sagitário
Se eu apertar bem os olhos, aliás, nem precisa ser tão bem apertado assim, eu consigo lembrar com precisão parnasiana da cara de sonsa da moça loira no ponto de ônibus. Vaca — não tenho outra explicação.
Era uma sucessão muito grande de desastres pra uma quarta-feira só. Ganhei outro hematoma de topada além do pé cheio de respingo de óleo quente de coxinhas. Dei com o nariz na porta, perdi uma reunião importante, escorreguei na minha própria escada mesmo depois de meses de uma convivência harmoniosa — harmoniosa demais até, para uma sagitariana aluada feito eu. Um daqueles dias perfeitamente explicados pelos seguidores de Murphy: tudo que era possível dar errado, deu errado de todas as maneiras possíveis.
Culminou com as sacolas que esqueci no ponto de ônibus. Logo com as compras da Superpão, que já é difícil até entrar sem se sentir culpado. O sentimento de humilhação chega a gritar dentro do peito. Claro, fatores externos colaboraram, eu estava estressada porque passei quase meia hora esperando um Olaria (quando demora um Olaria a gente sente que a cidade morreu mesmo), estava triste pela reunião que perdi... mas nada justifica a pessoa esquecer as compras no ponto de ônibus. É o reconhecimento de firma da involução humana. A primeira vez na vida que troquei o pão de queijo da Pif Paf pelo Forno de Minas, me sentindo toda crescida, e largo ali, na rua, para alimentar desconhecidos que devem ter rido de mim a noite inteira. Da roleta, já no ônibus, vi que a moça loira na calçada — roupa esportista, assídua de academia — deu uns passos em direção a mim, olhou pra mim, achei até que ela entraria no ônibus. Só estávamos nós duas no ponto. Mas ela não entrou. E agora eu sei o que significava aquele olhar.
Significava que ela esteve a um passo de ser honesta e não foi. Que ela viu meu estado letárgico de quem trabalhou até quase 20h e poderia ter salvado a minha noite, mas não salvou. Que ela teve, por milésimos de segundo, a intenção de ser decente, mas o logotipo da Superpão estampado na sacola falou mais alto. Ou seja, vaca mesmo, a moça loira por trás dos óculos de formato indefinido. Aí pensei: quem deveria estar de mau humor? Essa pessoa linda e divertida que sou eu — ou essa que se apropria da comida das pessoas? Comprei um hambúrguer e fui dormir na casa da minha amiga, cumprindo com a combinação. A gente dormiu às gargalhadas, tem coisa melhor? A moça loira que engula meu pão de queijo com sacola e tudo.
Eu estava escrevendo um texto completamente diferente para essa coluna, mas olha que interessante, olha como os motivos pra desistir da humanidade soltam na nossa cara constantemente — e mesmo tragédia corriqueira vira crônica. Eu sou de boa, como a galera costuma dizer. Eu sou super de boa. Eu dou um boi pra não entrar numa briga e uma boiada pra ela acabar rápido. Eu teria entrado no ônibus e devolvido o que fosse, a quem quer que fosse. A gente não perde essa mania ingênua de achar que se a gente for legal, o mundo também será.
Não que eu acredite piamente que a posição das estrelas no momento do nascimento da pessoa tenha influência direta sobre as idiossincrasias dela [pero que las hay, las hay], mas qualquer cartilha que descreva um sagitariano, me descreve. João Bidu poderia escrever um diário sobre a minha vida, essa vida com hematomas de topadas e sacolas esquecidas.
Eu sou do tipo que, por dentro, continua sorrindo.
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
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