A força do direito (e o direito da força)

sexta-feira, 06 de novembro de 2015

Essa semana, dia 5, foi Dia Nacional da Cultura — e bem que eu gostaria de ter comemorado. A data, escolhida em razão de ser o dia de nascimento de Ruy Barbosa, uma das maiores personas do Brasil, inclusive figurinha carimbada em terras friburguinhas, é só mais uma de tantas datas que celebram algo sem sentido prático ou real, tal qual o natal ou o dia dos namorados: celebra-se o protocolo da homenagem, mas se esquece do personagem central da dita-cuja. Jesus, o amor e o sexo coabitados voluntariamente entre seres totalmente desencaixados ou, como no caso, a cultura no sentido amplo da palavra. Cultura não tem nada a ver com show de graça na praça, cheio de barraquinhas de churrascos medonhas como modesta decoração — assim como presentes pagos com muita raiva nas filas dos caixas das lojas de departamento não têm nada a ver com o amor, seja o dos namorados ou o judaico-cristão. No fim, tudo vira cifra. Até a celebração.

Não que não haja motivo para festejo: falando por Friburgo, muito há o que se celebrar neste imenso celeiro de possibilidades. Aliás, aí é que está o fato curioso: é surpreendente que esses imensos muros de Mata Atlântica vejam nascer tantos artistas, já que o desânimo de se trabalhar com arte por aqui seja distribuído em doses cavalares ainda na maternidade, junto com a folha amarela de nascido vivo e a caderneta de vacinação. Em Friburgo, ou você tem diploma ou vive das calcinhas ou das fechaduras, tudo o mais é pura vadiagem. Ser artista, então...

Cultura é chama que arde e contagia. Mas incêndio nunca pediu licença, não vai passar a pedir só porque mora em cidade de interior. Fogo não pede permissão. Trabalhar com cultura requer o desempenho de um papel que vai muito além do entretenimento, ninguém deveria ter que explicar isso. É difícil, cansativo, às vezes pouco gratificante. Ser artista é ter hobby e fazê-lo por diversão tão somente; se alimentar e se vestir de vento e alegrar os jantares dos amigos, eis a nossa profissão, é o que pensam. Preguiça dessa gente pulha e pé de letra. Preguiça de gente que define, padroniza, cataloga e delimita antes de raciocinar. Nesse cenário de prova de títulos, está pra nascer classe mais desrespeitada que a dos artistas. “Ok, você é artista... mas trabalha com o que?” É, gente que trabalha com cultura é gente que nasceu com fogo por dentro. Tratada de qualquer jeito igualmente por sociedade e governo, mesmo que nas suas fossas sejam os artistas mais procurados que médicos: nossa música, poesia, cor e dança curam, ainda que os doentes tratados por nós nos tratem como quem só veio ao mundo pra fazer divertir e distribuir cortesia. Nasce-se artista... e depois, com muito custo, pouca paciência e brigando com muita gente, torna-se cidadão. E artista exerce papel de cidadão com maestria. Nós somos a força do direito.

Mesmo quando impedidos.

Mesmo quando o pouco dinheiro que há pague mais pelo aluguel das cadeiras que pela banda inteira. Mesmo que o governo promova meia-entrada às nossas custas. Mesmo que só a gente sinta a dor de ser quem é — porque sentir a delícia é caro demais. Mesmo quando se mora numa cidade com imenso potencial turístico... usado só pra enriquecer as mesmas pessoas de sempre. Amparados pela lei das ruas, que é a única que funciona, e contando apenas com a empatia do público — mas só do que não pede intervenção militar —, somos obrigados a nos submeter a um código de posturas que ainda estabelece ordem para charretes e lamparinas. Friburgo cultiva silêncio: depois das 22h não tem música, não tem arte, não tem transporte. Não tem cidade. E o fogo, a gente canaliza pra onde? De bar em bar é que a gente enche o saco. A gente teima, bota a cara na reta, invade os espaços, fala alto, discute com os policiais — o direito da força. Nós, a força do direito.

Mas triste, triste mesmo, é ter que enfiar logotipo do executivo em cartaz de evento — que só a gente sabe o trabalho que dá tirar do papel por própria conta. Por que o Palácio do Barão adota seus filhos pátrios, sim, mas tal qual os campos abrigaram os judeus — pra judiar. Quem nunca foi obrigado a usar o logo de uma secretaria sem ter apoio nenhum... que me atire o primeiro pãozinho de couvert.

Somos, de fato, sós. Dizem que o espaço é nosso, mas nem a praça que é o espaço mais nosso do mundo é tão nosso mais. “Apoio” já é o novo “se não vai ajudar, não atrapalha”. Tudo vira barganha. Cargo de comissão. Até a poesia dos muros de selva oblíqua e mata dissimulada.  

Somos livres, de fato, mas continuam recolhendo nossas caixas de som, nossos livros de rua, nossos violões. Livres, mas dentro de corpos escravizados, cumprindo horários metalúrgicos. Num mundo que não reconhece a cultura como profissão, a necessidade de ter a carteira assinada é quase um suicídio lento. Nascemos fogo — e morremos fogões, com fogo contido, que em vez de brilhar, esquenta marmita. Celebrar dia da cultura é quase como celebrar dia de finados: o homenageado não está mais lá. Ou foi reduzido a atração do dia, com cachê em permuta. E bebida nem inclusa.

Como eu dizia, essa semana foi o dia nacional da cultura. E, sem saber muito bem o que comemorar, comemoro a existência dos artistas que existem por si só. Dos que não se calam. Dos que, como Ruy Barbosa, sabem bem onde, como e quando incendiar. E incendeiam os outros. E seguem superando a força do direito. Lutando contra o direito da força — instituído por lei, eleito por nós... ou comissionado por ter nascido sobrinho.

Aliás, pudera a gente, nessa hora, inverter os papéis. “Ok, você é poder estabelecido... mas trabalha com o quê?”

 

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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