Meu último assédio

sexta-feira, 30 de outubro de 2015
Foto de capa
(Foto: Ivan Hall)

Eis que é chegada a última semana desse mês de outubro que teve quinhentos dias além do calendário oficial. Entre a pretensa proibição da pílula do dia seguinte, a Valentina, a redação do Enem e o sábado de dia das bruxas, muita coisa aconteceu nesse Brasilzão. Tudo constatando uma verdade: mulher nasceu mesmo predisposta a ir pra fogueira.

Mas claro que ninguém se toca com a nossa aflição. Eu gostaria de fazer um balanço propício, cheio de dados numéricos pertinentes sobre a violência contra a mulher, mas não faria o mesmo efeito de uma crônica. Aliás, os números também não fazem efeito: se fizessem, diminuiriam. Além do mais, não estou por dentro das estatísticas e, estranhamente, me vejo assentindo silenciosa com um monte de violências que ocorrem do meu lado, em nome de uma coisa que antes eu chamava de paz, mas agora, chamo de inércia — como numa Estocolmo constante, resquício da criação que me ensinou que só seria exemplo de sucesso na vida a mulher que casasse bem, bem criasse os filhos, bem e discretamente vivesse e morresse. Ou seja: não adianta ser aguerrida na internet e covarde na vida real. Esse é um texto de expiação e não só de protesto.

Mulher boa é mulher discreta, os androcentristas dizem. O sorriso amarelo é a melhor resposta, o silêncio é a maior arma da mulher de bem, eles concluem. Mas eu não quero ser silêncio nem quando estiver errada. Eu não quero ser inércia nem quando estiver com medo.

O aborto, por exemplo. Fosse o homem o ser que gerasse outro dentro de si, o aborto não só seria permitido, como garantido por lei sob qualquer hipótese e amparado pelo Sistema Único de Saúde. Cadê moral, ética e religião, quando o assunto é bem-estar do homem? Eu me desesperei quando engravidei pela terceira vez, e é claro que o aborto, até então jamais considerado, foi mencionado dessa vez. Não o fiz, tamos aí, na atividade, eu e toda a minha imensa prole vivinha da silva, mas serve de comparação para o momento atual. Enquanto houver ideologias demais que justifiquem apenas o nascimento, sem considerar o pragmatismo, que bebê precisa comer, vestir e estudar, além de nascer, milhares de  bebês e de mulheres morrerão.

Dizem de tudo: que podemos dar o bebê pra adoção. Que se a gente não quer, vai ter quem queira. Que a gente vai se arrepender. Que bebê é bênção. Que abortar é crime/pecado. Que a criança não tem culpa. Só não dizem o que a gente precisa realmente ouvir nessas horas. Que a gente tem o direito de escolher como conduzir a própria vida. Que responsabilidade de prevenção é de todos os envolvidos no coito. Ou que é possível ter bom emprego mesmo com filhos. Que o governo vai garantir boas escolas. Que os patrões nunca vão olhar com desdém e deboche as mães que precisam faltar ou atrasar por causa dos filhos. Que a gente vai ter apoio. Que a gente tem o direito de analisar todas as possibilidades reais que se apresentam. Porque na barriga, todo bebê é amado. Mas, uma vez fora dela, toda mãe que se vire.

Aliás, a primeira mentira que nos contam é de que teremos apoio se a opção for pelo nascimento do bebê. Mentira braba mesmo. Principalmente se você for fruto de uma família que se diga religiosa. Não fazer o aborto não garante nenhuma das Canaãs prometidas. Porque o aborto existe mesmo quando você não faz. Basta dizer a palavra. Tudo que vier daí é castigo e é merecido. Se você for do tipo moderna, que largou marido todas as vezes que achou necessário, não viveu no fogão e quis fazer algo da sua vida, como ter o próprio dinheiro e a própria opinião, aí que não existe ajuda mesmo. Mulher boa é a que aceita marido alcoólatra e violento, xingamento e humilhação, em nome dos filhos. Mulher que se impõe não é boa, não. O mais incrível é que, geralmente, todos os pais do mundo são amparados por suas famílias, só as mães são infelizes. Se negligência fosse um esporte, meus parentes, catolicíssimos, teriam altos índices olímpicos. Eu optei por ter todos os meus filhos consciente de que contaria apenas com o amor e o apoio de pessoas que não têm o meu sangue — e ainda bem que elas existem, porque muitas mulheres nem isso têm. Família que a vida deu. Para os de sangue, pedir apoio é vitimismo.

Aí o cara vai e lança um projeto absurdo, que pode, em algum momento, proibir a venda da pílula do dia seguinte. O cerco está se fechando, isso numa semana em que uma menina de 12 anos é molestada em praça pública — na internet. Cadê os PLs que vão defender a Valentina? Cadê as prisões? Cadê a “família”? Aliás, o autor do PL 5069/13 é o mesmo que inventou um “estatuto da família”. A ironia é que, como sou mãe solteira, segundo os olhos do Estatuto, meus filhos e eu não formamos nem uma família de verdade. Fomos abortados por um cara que condena o aborto. “Família” são esses caras casados, abertamente contra o aborto, que assediam meninas, mulheres na rua, colegas de trabalho — mas que só andam com roupa limpa porque alguém lavou. São casados com  mulheres, então são normais, eles pensam.

Olha, é tanto absurdo que ficou até difícil de terminar o texto. Por que, no fim, a violência é sempre a mesma: tirar a autonomia da mulher. Seja batendo, seja xingando, seja diminuindo. Tratá-la como mero objeto de prazer — e, quanto mais nova, mais prazer. Na minha época não foi diferente: nosso primeiro assédio foi achar a banheira do Gugu normal ou ensaiar os passos para ser a próxima loura do Tchan. Nosso assédio foi, como este, televisionado. Quando não objeto de prazer, mais velhas, com corpos já cansados e mais duras em relação à vida, meras prestadoras de serviços. Cuidar sozinha de casa, criança e marido. Às vezes tudo isso e tudo isso junto. Quando é que vão ensinar para os meninos que eles não têm que ser “cuidados”? Que a responsabilidade de cuidar de si mesmo é do si mesmo? Eu estou ensinando isso para os meus.

 Não entrei na campanha de contar como foi o meu primeiro assédio. Lembro bem, porém, faço parte das que não têm vontade de compartilhar. Mas quero sempre lembrar muito bem do último, sabe. Pra ganhar força de impedir o próximo. Mulher boa é mulher voz — e não inércia.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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